Depoimento mentiroso que tentava ligar
Bolsonaro aos assassinos é mais um triste capítulo de um crime que
completa 600 dias sem solução
A execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes
não para de produzir notícias espantosas,
a começar pelo tempo de 600
dias sem que o caso tenha uma solução, um prodígio até para os padrões
indigentes de produtividade da polícia nacional.
[considerando que mais de 100.000 homícidios sem solução - só de 2015 para cá, o caso da vereadora está dentro do que podemos chamar 'normalidade'.] Quem matou? Quem mandou
matar? As famílias das vítimas e toda a sociedade brasileira aguardam
até hoje essas respostas, em vão. Cercada de confusões de todo tipo, a
investigação jogou mais dúvidas do que luzes sobre o episódio. Quando se
imaginava que nada de pior poderia acontecer depois desse roteiro
lamentável,
eis que no último dia 29 surgiu a notícia de uma possível
conexão de Jair Bolsonaro
com a história. Embora essa ligação tenha sido formalizada em
depoimento à polícia,
ficou claro logo depois que ela não fazia sentido.
Mesmo sendo mentirosa, foi suficiente para o caso do crime sem fim
atingir um novo patamar em termos de polêmica e de agitação política.
O envolvimento do nome de Bolsonaro no enredo do crime surgiu em uma reportagem do
Jornal Nacional,
da Rede Globo. A Polícia Civil do Rio de Janeiro teve acesso ao caderno
de visitas do condomínio Vivendas da Barra, na Zona Oeste do Rio, onde
têm casa o presidente e o ex-policial militar Ronnie Lessa, acusado das
mortes de Marielle e de Anderson.
No dia 14 março de 2018, às 17h10,
pouco mais de quatro horas antes do crime, o ex-PM Élcio Queiroz, outro
suspeito dos assassinatos, a bordo de um
Logan Prata, anunciou na
portaria do condomínio que iria visitar Jair Bolsonaro e acabou indo até
a casa de Lessa
. À polícia, o porteiro afirmou que, a pedido de Élcio,
ligara para a casa 58, onde vive o presidente. E que uma pessoa que ele
identificou como sendo o
“seu Jair” liberara a entrada.
Élcio, no
entanto, dirigiu-se à casa 65, onde mora Ronnie Lessa. O porteiro,
então, telefonou novamente, e o mesmo
“seu Jair” teria dito que sabia
para onde ele estava indo.
Conforme a reportagem, no dia da visita, no
entanto, Bolsonaro estava em Brasília, e não no Rio. O então deputado
federal registrou a presença em duas votações na Câmara. Lessa é acusado
pela polícia de ser o autor dos disparos contra Marielle e Anderson.
Élcio, por sua vez, é
suspeito de ser o motorista do carro que levava o
matador. Os dois foram presos em 12 de março.
Bolsonaro recebeu a notícia no exterior, em meio à viagem para captar
investimentos na
Ásia e no Oriente Médio. Em uma live transmitida da
madrugada da
Arábia Saudita, negou qualquer ligação com os suspeitos dos
assassinatos,
reclamou do vazamento de informações de um processo que
corre sob sigilo e reagiu de forma furiosa às insinuações. Seu alvo
principal foi a imprensa, classificada por ele de
“porca” e “nojenta”.
“Vocês são patifes, canalhas, não são patriotas”, vociferou, dirigindo
os ataques principalmente à Rede Globo. No momento de maior destempero,
ameaçou cancelar a concessão pública da emissora, que vence em 2022, uma
ameaça absurda e injustificável, mesmo levando-se em conta
o momento de
indignação do presidente, que tem certeza de ser vítima de injustiça e
perseguição no caso.
A própria reportagem do Jornal Nacional já deixava claro um
problema grave no depoimento do porteiro. Como se viu, no dia em que ele
diz ter interfonado para a casa de
“seu Jair”, Bolsonaro encontrava-se
em Brasília. Além disso, se os suspeitos do crime agiam em conluio com o
presidente,
o normal seria tentar despistar essa ligação a todo custo.
Dentro dessa lógica, entrar no condomínio a pretexto de ir à residência
de Bolsonaro para depois se dirigir ao endereço do comparsa não faz o
menor sentido.
Um dia após a reportagem do Jornal Nacional,
surgiu outra prova robusta contra o depoimento do porteiro. Em vídeo
divulgado nas redes sociais, um dos filhos do presidente, Carlos
Bolsonaro, que tem casa no mesmo condomínio, mostrou arquivos de todas
as gravações das chamadas da portaria para as residências do Vivendas da
Barra no dia do assassinato de Marielle.
Um dos áudios revela que
Élcio, ao chegar ao local, mandou interfonar para a casa 65, ou seja, a
residência de Ronnie.
Na mesma quarta, conforme antecipou o site de VEJA,
o Ministério Público já dava como certo que o porteiro havia mentido no
depoimento. “
Pode ter sido um equívoco, pode ter sido por vários
motivos que o porteiro mencionou a casa 58 (de Jair Bolsonaro).
E eles serão apurados”, afirmou a promotora Simone Sibilio. Os áudios
do condomínio passaram por perícia e foram incorporados ao processo.
Depois de classificar a notícia como
“factoide”, o procurador-geral da
República, Augusto Aras, anunciou o arquivamento da investigação sobre a
menção ao nome do presidente no episódio do assassinato enviada pelo MP
do Rio ao STF.
Frederick Wassef, que é o verdadeiro advogado do presidente
, classificou o episódio do porteiro
como “
uma armação barata e de baixíssimo nível”. “Ela foi feita e
arquitetada por pessoas do Rio, que plantaram uma testemunha e pediram a
um indivíduo que mentisse deliberadamente”, acusa. O próprio Bolsonaro
encarregou-se de ir mais adiante nessa suspeita, dando nome aos bois
.
Ao citar uma revelação feita pela coluna Radar,
do site de VEJA, a de que o governador fluminense Wilson Witzel sabia
com antecedência do depoimento do porteiro, o presidente acusou o
político do PSC de manobrar para tentar destruí-lo tendo como objetivo a
conquista de mais espaço para se credenciar às eleições de 2022 ao
Palácio do Planalto. Witzel negou, mas Bolsonaro continuou batendo na
tecla ao lembrar de um encontro entre os dois ocorrido em 9 de outubro
no Clube Naval do Rio. Na ocasião, segundo Bolsonaro, Witzel lhe revelou
que o porteiro havia citado seu nome no depoimento.
Brasília entrou em polvorosa com a repercussão política do novo
escândalo. Na quarta, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP),
decidiu despachar de sua residência.
“Se ele fosse para o Senado, a
oposição passaria o dia na tribuna explorando a crise”, afirma um dos
interlocutores que foram à casa de Alcolumbre. Muitos parlamentares
mantiveram cautela ao avaliar o episódio
. “Nunca fui bolsonarista, mas
acho que todos só devem ser ‘condenados’ se comprovado definitivamente o
erro”, afirma o ex-governador de São Paulo Márcio França (PSB). O
deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), líder da legenda na Câmara,
declarou que o episódio em si foi superado, mas a preocupação continua.
“O clima político está muito carregado. Afinal, alguém tentou envolver o
presidente em um crime, o que é grave e precisa ser esclarecido”, diz.
A história marca o ápice de um caso repleto de confusões e trapalhadas
de todo tipo. Vários mandantes já foram apontados, e houve até uma
tentativa de sabotagem nos trabalhos para incriminar rivais. Boa parte
das trombadas ocorre por disputas entre autoridades que deveriam
trabalhar juntas, mas, na prática, atuam como concorrentes. Polícia
Civil e Ministério Público se vangloriam do fato de que a investigação
da morte de Marielle resultou em frutos não esperados, como a
desarticulação da mais antiga milícia carioca, em Rio das Pedras, na
Zona Oeste, a revelação da existência do Escritório do Crime, grupo de
matadores por trás de diversos homicídios não esclarecidos no Rio, e do
esquema de tráfico de armas liderado por Ronnie Lessa.
Mas não é raro
ouvir críticas de delegados a promotores e vice-versa: para além da
discordância de métodos, há disputa intensa por protagonismo. O pedido
de federalização do caso, feito pela ex-procuradora-geral da República
Raquel Dodge, embaralhou ainda mais a história.
Enquanto o Superior
Tribunal de Justiça não decide se o inquérito muda de competência, veio à
tona, junto com o pedido, a existência de um áudio no qual um miliciano
diz que a morte de Marielle foi encomendada por Domingos Brazão,
conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado, junto a Élcio
Queiroz e Ronnie Lessa.
O problema: nem a Polícia Civil do Rio nem o
Ministério Público acreditam totalmente no relato. “
Não há nenhuma prova
concreta que envolva Domingos Brazão”, afirma a promotora Simone
Sibilio.
Horas depois do assassinato de Marielle e Anderson, quase todos os
pré-candidatos à Presidência divulgaram notas de pesar. Jair Bolsonaro
preferiu ficar mudo. Quando questionado, disse que sua opinião
“seria
polêmica demais”. Ao longo dos meses, entre o silêncio e declarações de
menosprezo ao episódio, o clã passou a criticar a repercussão do caso
Marielle em momentos pontuais — o vereador Carlos, por exemplo, criticou
a Mangueira por usar o nome dela em um samba no Carnaval carioca de
2019. Em março, quando os suspeitos foram presos, circularam na internet
fotos de Bolsonaro ao lado de Élcio.
[Élcio e Lessa estão presos por envolvimento com tráfico de fuzis, já que as suspeitas não justificam a prisão.] Logo também veio à tona a informação de que o atirador era vizinho do
presidente. Embora demonstrem uma proximidade desagradável, essas
coincidências nada provam. A filha mais velha de Ronnie Lessa, Mohana,
disse a VEJA que sua família não tinha contato com os parentes do
presidente
: “Eu vi o Bolsonaro duas vezes indo para a praia com a filha
menor e a Michelle passeando com o cachorrinho. E só”.
Colega de Marielle na Câmara de Vereadores do Rio, Carlos Bolsonaro deu
um depoimento aos policiais logo no começo das investigações devido a
uma discussão ocorrida antes do crime. Um assessor de Marielle andava
pelo corredor mostrando o prédio a dois amigos quando, em frente ao
gabinete 905, de Carlos, comentou que ali ficava o filho de um deputado
“ultraconservador” que beirava o
“fascismo”. O Zero Dois ouviu tudo e,
aos berros, começou a discutir, até que Marielle apareceu, colocando
panos quentes. Desde a briga, Carlos passou a evitar até entrar no
elevador se Marielle ou assessores dela estivessem presentes. A Polícia
Civil do Rio voltou a se debruçar sobre essa velha história neste mês.
Pelo menos quatro ex-funcionários de Carlos foram ouvidos até agora
. Mas
mesmo adversários políticos não acreditam nessa hipótese. Pessoas
próximas à vereadora receberam com preocupação a notícia de que essa
linha de investigação havia sido reaberta, uma vez que não veem, ali,
motivo suficiente para que alguém tivesse ordenado a execução. Avaliam,
também, que o movimento dá indícios de que a polícia não sabe por onde
seguir.
Foi nesse enredo tragicamente rocambolesco que o nome do presidente
acabou envolvido. Destemperos à parte,
Bolsonaro, que já sofreu uma
tentativa de assassinato, agora tem razão em reclamar de que atentaram
contra sua honra com base em um depoimento fajuto. Pode-se não gostar
dele por sua visão simplória e paranoica de mundo, por seu gosto por
ditaduras e por sua incapacidade de administrar a nação em paz, entre
outros tantos motivos. A
despeito dessas críticas, justas ou não,
ninguém pode ser vítima de uma insinuação de tamanha gravidade sem
provas — muito menos a maior autoridade do país. Esse enredo triste e
irresponsável tampouco faz justiça às vítimas, às famílias de Marielle
Franco e Anderson Gomes e a todos os brasileiros que acreditam na busca
da verdade. O Brasil não pode mais conviver com isso. Está mais do que
na hora de acabar com o mistério do crime sem fim.
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659
Na VEJA, MATÉRIA COMPLETA
Colaboraram Edoardo Ghirotto e Roberta Paduan