Vozes - Gazeta do Povo
"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.
O ano era 2004. Ou 2005. Infelizmente já alcancei aquela idade em que um ano a mais ou a menos não faz muita diferença para a história. De qualquer forma, era um ano de Lula como Presidente. De Zé Dirceu, de Palocci, da gerentona Dilma sendo gestada. De Gleisi Hoffmann & Cia. Depois de derrotas nos pleitos de 1989, 1994 e 1998, a esquerda estava em festa por ter eleito um operário para comandar os destinos do país.
E eu estava ali, no meio de uma festa dentro da Festa. Por razões que só a Providência explica, tinha sido convidado para o aniversário de um esquerdista notável: o escritor e cineasta Fausto Wolff. Em Copacabana, apartamento de frente para o mar. Aquele janelão descortinando a beleza do mar noturno. Aquela rodelona enorme de queijo sobre a mesa. Uísque single malt 12 anos. E a nata da intelectualidade carioca ali.
Aí chegou a hora de cantar o parabéns. Fausto Wolff, que tinha uns
cinco metros de altura, mandou todo mundo calar a boca, soltou
meia-dúzia de expletivos, fez um discurso falando mal da imprensa,
que se recusava a divulgar seus livros, criticou as “medidas neoliberais” de
Lula e, por fim, convidou os presentes a entoarem a Internacional Comunista.
E eu ali, no meio de Ziraldos e Jaguares, me perguntando aonde é que eu
tinha ido parar.
“Tudo tem muito”
Havia algo de patético na cena. Mas também algo de admirável. Eu não
sabia, mas estava entre legítimos representantes da esquerda caviar retratada
tão bem por meu colega Rodrigo Constantino. Uma esquerda romântica,
utópica e inegavelmente talentosa (leiam À Mão Esquerda, do Fausto Wolff)
e bem-sucedida. Era gente estudada, viajada e ilustrada, que não precisava dar
cambalhotas (nem imitar foca) para defender a visão de mundo
marxista da qual eu discordava.
Hoje me peguei lembrando dessa festa e das pessoas ali presentes com
alguma nostalgia.
Tudo porque assisti a um “debate” ocorrido em maio entre
a funqueira Anitta, autora dos imortais versos “An an, tutudum, an na/ Vai,
malandra, an na”, e o deputado federal Alessandro Molon (PSB), uma mistura
de Greta Thunberg e Richard Gere com sotaque
carioca. Durante a conversa, uma Anitta que afirma ter estudado para tratar do
assunto diz as maiores bobagens possíveis sobre o agronegócio. “Existe mais
cabeça de gado do que cabeça de pessoa [no Brasil]”, observa ela em certo momento
– não o mais constrangedor.
Em seguida, ela critica o consumismo e a abundância (“tudo tem muito”)
para dizer que o flato das vacas é muito poluente. Anitta fala ainda sobre o
uso de água na pecuária e sugere que a proteína nossa de cada dia deveria ser
muito mais cara. “Aí a gente não teria um estímulo tão grande à agropecuária”,
conclui ela com uma lógica capaz de causar mais estragos do que nitrato de
amônia. “E os alimentos usados para alimentar as vacas poderiam alimentar a
gente por muito tempo”, argumenta, por assim dizer, ela. Em seguida Anitta
sugere que haja um limite para a produção de carne, desestimulando o consumo e
magicamente salvando o meio ambiente.
De volta àquela festa
(........)
Mas sou obrigado a reconhecer que, a despeito da hipocrisia, dos
volteios linguísticos e, em alguns casos, da devoção cega ao “metalúrgico
impoluto”, a esquerda single malt, queijos finos & caviar tinha aquilo
que a gente chamava de “estofo”. Ou pretendia ter. Ela também conhecia e
respeitava suas próprias limitações. E havia, sim, muitos tapinhas nas costas e
afagos no ego, mas isso era contrabalanceado por um espírito crítico que
beirava o maldoso e por um temor reverencial que os impedia de passar ainda
mais vergonha em público.
Você talvez diga que estou romantizando. Mas, sei lá, diante da
Esquerda Raudério que temos
hoje, essa esquerda que pede criminalização da gordofobia, promove ideologia de gênero, se acha
capaz de discutir agronegócio com base em alguns minutos de estudo (leia-se:
procurando sobre o assunto no Twitter), defende censura para opositores e que
expressa suas melhores ideias por meio de grunhidos, rebolados ou pintando os
cabelos de verde-limão, acho que ainda sentiremos falta dos Chicos,
Caetanos, Faustos e Ziraldos. Da esquerda que sabia citar Maiakovski e sonhava em salvar o mundo do
capitalismo malvadão enquanto esparramava uma porção generosa de caviar sobre a
torradinha.
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Obrigado.]
Paulo Polzonoff Jr, jornalista - Vozes - Gazeta do Povo
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