Blog Prontidão Total NO TWITTER

Blog Prontidão Total NO  TWITTER
SIGA-NOS NO TWITTER
Mostrando postagens com marcador cadáveres. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador cadáveres. Mostrar todas as postagens

sábado, 26 de setembro de 2020

Anatomia da fome - Cuidar dos famintos, erradicar a fome, tem que ser prioridade total. Que adianta favorecer as chamadas minorias ao tempo que milhões morrem de fome.

Antonio Carlos Prado, Fernando Lavieri e Mariana Ferrari -   IstoÉ

Com o fim próximo da pandemia, os contadores de cadáveres de alguns órgãos da grande mídia, deveriam contar os que morrem de fome - seja pela fome mesmo ou em decorrência dela e muito, provavelmente, os mortos pela fome este ano, superam em muito os mortos pela covid-19.

A fome come para dentro o corpo daqueles que não têm nada para comer, porque somente os famintos sentem o que se chama boca do estômago. Atualmente, no País, pelo menos 10,3 milhões de brasileiros não têm o que comer diariamente. E a situação é ainda mais abrangente em 36,7% dos lares, que padecem de outra condição extrema: não possuem acesso regular à alimentação em quantidade e qualidade suficientes para se nutrirem. É o que se denomina, na econômica e ciências sociais, insegurança alimentar. A fome é escalonada em três níveis. Mera teoria. Fome sem recompensa de comida é tudo igual: é fome! O estudo, divulgado na semana passada, é do IBGE e refere-se a 2017 e 2018 — apenas três anos, portanto, após o Brasil ter sido retirado pela ONU do “mapa da fome”, em 2014. Em 36 meses, a tal triste mapa os nossos tristes trópicos, assim definidos pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, retornaram com 14,1% a mais de miséria.


INFÂNCIA PERDIDA O pote de plástico esconde o rosto esfomeado: querer comer, mas não poder (Crédito: RodrigoZaim)

Não adianta o governo que agora ocupa o Palácio do Planalto e nem adianta a Ministério da Economia dizerem que nada têm a ver com o assunto, uma vez que o levantamento do IBGE cobre um biênio anterior ao desembarque deles no poder. Não adianta!  O presidente Jair Bolsonaro elegeu-se prometendo resolver a questão do desemprego, da carência e da fome. Quase dois anos de gestão, e nada, absolutamente nada. [o governo atual não pode resolver o que ocorreu em 2017/18.

Seu projeto era resolver a fome, desemprego e outras mazelas que herdou dos governos anteriores - especialmente dos malditos governos do perda total = pt.

Só que em 2019 o presidente Bolsonaro sofreu oposição sistemática do Poder Legislativo, que teve por muitas vezes o apoio do Poder Judiciário. Passou a prevalecer - de modo informal mas com eficiência diabólica - o entendimento: se é proposta do governo Bolsonaro, não presta.

Em 2020, quando o presidente Bolsonaro começou a iniciar um controle da situação, surgiu a pandemia - cujos efeitos negativos para a saúde pública e economia, do Brasil e do mundo, são notórios e incontestáveis].

(.....)https://istoe.com.br/anatomia-da-fome/

“Aqui em casa, para cada boca só dá uma colherada de comida. Quando dá. Moro em quatorze metros quadrados, com três filhos adultos mas desempregados. E há os netos e bisnetos. A ponte de madeira que passa sobre o mangue, único meio de chegar em casa, dá medo. Passa gente toda hora, passa carrinho de bebê balançando, passa cachorro — e passa ratos. É tudo mangue”. Rute Rocha da Silva

ISTOÉ conversou com quatro famílias que moram nas palafitas da cidade paulista de Cubatão: O estômago ronca e nada de comida cai nele. É aí que a fome começa a comer para dentro. O nervo chamado vago, no cérebro, não quer saber se tem ou não alimento no prato marrom de vidro ou no painelão amassado, ele simplesmente avisa o intestino que a fome está presente e manda produzir ácido digestivo no estômago. Comida? Nada. Ar, só ar, e é esse ar combinado com o ácido que produz o ronco. Se vira rotina, como já virou para milhões de brasileiros, vêm as carências das vitaminas A, C, D e E, a carência de cálcio, ferro e zinco, de ácidos graxos essenciais. Vem a tontura, vêm os tremores, o cansaço, a irritabilidade, a dificuldade de concentração. Vem a mega sena que teima em não dar, vem o cachorro que teima em latir, a criança que teima em chorar, a mulher que teima em brigar — em casa onde falta pão, todo mundo briga e ninguém tem razão. Vem a anemia, vêm as infecções… vem a morte. Crianças, quando sobrevivem, podem crescer com déficit cognitivo e estatura aquém do padrão saudável (na década de 1970, por exemplo, 30% de nossas crianças tinham altura abaixo do recomendável). “Quando a impossibilidade de comer se transforma no normal do dia a dia, o organismo reage comendo a si mesmo”, diz Aline Garcia, especializada em Serviços de Alimentação e nutricionista da conceituada Clínica Maia. “O corpo começa a tirar glicose e proteínas dos próprios músculos”. Quem fica sabendo de tanto sofrimento? Ninguém, a não ser os familiares que também passam fome. E lá em cima, muito lá em cima, disso sabem e dão de ombros as autoridades que nada fazem para eliminar a miséria crônica.

 Com isso, o que diz Bolsonaro? “Fala que se passa fome no Brasil. É uma grande mentira”. Mais: “Você não vê gente, mesmo pobre, com físico esquelético”. A resposta é simples e vem de 1946 com o clássico “Geografia da fome”, de Josué de Castro, um dos maiores geógrafos e cientistas sociais que o País já teve: “A fome não é um fenômeno natural, é um fenômeno social, produto de estruturas econômicas defeituosas”.


SOBRAS Com seis filhos, Helen Rose apanha os restos deixados no chão no fim da feira da Cidade Tiradentes: o lixo é o único alimento (Crédito:RodrigoZaim)

“Quando meus filhos vão dormir com fome, dou carinho. E digo que, amanhã, Deus vai prover. Meu barraco tem dois cômodos para quatro pessoas. Meu marido está desempregado, minha mãe entrevada, cuido dela também. Quando consigo trabalho de doméstica, olho a comida boa na casa da patroa, mas não como não. A patroa é boa, oferece, mas fico com culpa de comer sabendo que meus filhos estão de barriga vazia. Passei fome quando era criança. Agora são meus filhos que estão famintos”. Jerenildes Malaquias

“Tenho seis filhos. Hoje (sexta-feira 18) comprei três cenouras, um pepino e três limões. É o jantar, vai ter de durar por três noites. Tenho um pouco de arroz e feijão. Perdi o emprego por causa desse vírus que está aí”. Bárbara Daniela dos Santos

E, como não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar, o preço da comida mais básica disparou, praticamente anulando o efeito do auxílio emergencial. Tomem-se os últimos doze meses. O arroz subiu 19,2%, o feijão preto 28,92%, o feijão carioca 12,12%, o óleo de soja 18,6%. E o sempre barato frango tornou-se nobre: foi majorado 7%. Há saída? Sim, se as elites deixarem de ser autofágicas e autopredatórias. Na análise de Belik, há quatro fatores para a superação da insegurança alimentar: disponibilidade de alimentos, acesso a eles, oferta constante e a qualidade do produto. E, acrescente-se, destravar a produção já, e criar empregos já.

“Estou há dois dias sem colocar uma comida dentro do corpo. Meu companheiro e meu filho estão desempregados e a panela vazia. Moço, não vou mostrar minha casa porque tenho vergonha. Ah, adotei um cachorro, o Scooby. Quando temos o que comer, ele come também”. Cleusa Alves

ISTOÉ conversou também com três famílias da zona leste de São Paulo. Evocando e adaptando expressões de Machado de Assis, que passou fome na infância, nasceu no Morro do Livramento e era negro, algumas dessas pessoas “têm a resignação cristã”, mas todas “possuem a alma calejada da miséria”:

“Tá dando. Vou no final da feira para pegar as sobras e fazer sopa. Tenho seis filhos, todos estão sem peso por causa da falta de alimentação. Eu prefiro que eles jantem e não almocem para não dormirem com fome”. Helen Rose

Não se trata somente de um mês, um ano, uma década. O triste e trágico choro brasileiro dá-se dessa forma ao longo de cento e trinta anos republicanos. As mulheres chefiam 61% dos lares nos quais há insegurança alimentar. Sem dúvida, esse é um dos mais tristes estudos já feitos pelo IBGE. Triste, porém urgente e necessário. E poderá deixar de sê-lo se o governo atual e os governantes futuros lembrarem que a fome que eles não sentem é a fome que estufa de ar a barriga de infinito contingente de brasileiros e brasileirinhos.

“Tenho oito filhos, já grandes e desempregados, e netos. Na segunda-feira (dia 21), eu estava apenas com três pequenos pedaços de batata doce na geladeira. Mas me sobra valentia: enquanto eu viver, ninguém aqui morre de fome. Toda as manhãs, quando saio da cama, a primeira coisa que penso é: o que vou dar para os netos comerem?”. Francisca da Silva

“A fome é uma dor que começa no estômago. Entra na alma e aí a lágrima vem”. Lucas José de Oliveira

Em IstoÉ, MATÉRIA COMPLETA


segunda-feira, 22 de junho de 2020

Modos sobrevivência e governabilidade - Denis Lerrer Rosenfield

O Estado de S.Paulo

O presidente não foi eleito para cuidar dos filhos, mas para orientar um projeto nacional

O presidente Bolsonaro entrou no modo sobrevivência, que deve ser distinguido do modo governabilidade. Conforme o primeiro, ele orienta todas as suas ações para se manter no poder, sem nenhuma preocupação com o Brasil, procurando apenas conservar o mandato. Pelo segundo, ele teria de ter projetos, ideias e meios de execução, o que implicaria um governo moderado, sem conflitos e provocações, voltado para a articulação política. A parceria com o Centrão, por exemplo, se faz sob o modo sobrevivência, mediante a distribuição de cargos em órgãos e empresas estatais, em flagrante contradição, aliás, com sua própria narrativa. Não importa, visto que necessita em torno de 200 deputados para evitar o processo de impeachment e sempre pode haver desfalques. Entre o mandato e a narrativa, o presidente já fez a sua opção, com evidentes prejuízos perante a sua rede de apoiadores digitais.

Daí não se segue, porém, que ele adquira governabilidade, pois isso significaria a capacidade de aprovar projetos de lei e emendas constitucionais, tendo, por sua vez, como condição a existência de ideias a serem apresentadas. Até agora, só tivemos ideias ao léu. E não se recorra à pandemia como justificativa, pois a inércia governamental é anterior a ela. [não pode ser olvidado que desde sua posse, já nas  primeiras tentativas de governar, inclusive em busca de cumprir  promessas de campanha, o presidente Bolsonaro sofreu boicote sistemático via Congresso Nacional, seja pelo autonomeado primeiro-ministro Maia, seja pela senador Alcolumbre, cujas ações sempre foram validadas pelo STF.]  projeto de privatização e concessões apresentado com grande fanfarra mostrou-se raquítico. Também não foi apresentado nenhum projeto de reforma tributária, administrativa ou política. De novo, só falas e mais falas sem consequência, senão a demagógica.

O presidente encontra-se numa encruzilhada. Se permanecer orientado pelo confronto incessante, produzindo inimigos reais e imaginários, desgastará ainda mais o seu prestígio, pondo o modo sobrevivência em risco. O modo governabilidade, por seu lado, nem seria levado em consideração. Conseguiu ele até mesmo um prodígio: uniu o Supremo Tribunal em nome da defesa da Constituição! Até então quase tínhamos 11 Supremos, como se cada um fosse uma ilha de decisões monocráticas. Agora surge um coletivo. Nesse sentido, não tem por que o presidente reclamar da consequência de suas ações.

Seu risco aumenta ainda mais se sua erosão continuar se propagando pela opinião pública, atingindo até mesmo a sua rede de apoiadores. Muitos se sentem já abandonados, acionando, neles também, o modo sobrevivência. Se até pessoas próximas do presidente, como o ex-policial Fabrício Queiroz, são presas, o que podem esperar os demais? Se apoiadores importantes sofrem mandados de busca e apreensão ou quebras de sigilo bancário, onde fica a tão apregoada proteção presidencial ou de seu clã familiar? [quem expede os mandatos de busca e apreensão são integrantes do Poder Judiciário; 

Sendo o Brasil um país sob o 'estado democrático de direito', ser ou não ser amigo do Presidente da República, não deve atrair, nem evitar, mandados de busca e apreensão ou qualquer outra medida ordenada pela Justiça, cabendo aos alvos buscar, incansavelmente, contestar tais medidas, que devem ser apresentadas via Poder Judiciário.

Nos parece que o Brasil, apesar da harmonia e independência entre os 3 Poderes, ainda não atingiu um estado de anomia que torne imperativo outras medidas.] 
 E se esses vierem a ser ainda mais atingidos? Até o modo sobrevivência naufragaria, pois o próprio apoio do Centrão tampouco é incondicional e perene, depende das circunstâncias. Nenhum partido ou parlamentar comete suicídio político. Isso significa que o presidente deveria adotar o modo governabilidade. Considerando a sua família e a sua personalidade, as suas chances são pequenas, porém não desprezíveis. Ou seja, a moderação e a prática democráticas deveriam ser o seu norte, abrindo-se ao diálogo e à articulação política. 

Não poderia o presidente permanecer refém de sua linha ideológica, com ministros utilizando constantemente a polarização amigo/inimigo, como se o Brasil fosse uma mera preocupação lateral. O presidente deveria, nesse sentido, fazer uma reforma ministerial baseada em critérios técnicos, voltados para o progresso, abandonando suas posições anticientíficas e o confronto com os governadores. O Brasil acumula cadáveres e o presidente finge que nada é com ele, num menosprezo indizível pelo outro, pelos que sofrem e morrem aos milhares pelo País afora.

O presidente deveria olhar menos para a sua família e mais para o Brasil. Não foi eleito para ser pai e cuidar dos filhos, mas para orientar o Brasil num projeto nacional. Muitas esperanças foram nele depositadas e muitas foram as desilusões causadas. Jair Bolsonaro está cada vez mais isolado - isolado do Supremo, isolado da Câmara dos Deputados e do Senado, isolado da grande imprensa, isolado em parte dos outros grandes meios de comunicação, isolado progressivamente da sociedade em geral.

Sob o modo defesa, diz falar pelo povo, como se ele mesmo fosse o povo, ou a Constituição, numa espécie de delírio totalitário. Ou, ainda, confundindo os seus apoiadores digitais ou as pequenas aglomerações na saída do Palácio da Alvorada com expressões “populares”. O arremedo de participação, tendo como coadjuvante a mera demagogia, cobra o seu preço na insensatez crescente.

Urge que o presidente entre no modo governabilidade, pois apenas o modo sobrevivência não lhe permite aguentar mais dois anos e meio. Não aguenta porque o Brasil não aguenta. Desemprego aumentando, renda caindo e o PIB não se recuperando são fatores que podem terminar tornando viável o impeachment. A moderação e o abandono do conflito podem tornar-se, assim, condições da preservação mesma de seu mandato. Hoje está a perigo!

Denis Lerrer Rosenfield, filósofo - O Estado de S. Paulo



terça-feira, 16 de junho de 2020

Escravidão voluntária - Vozes - Gazeta do Povo

Guilherme Fiuza



Ok, você quer acordar desse sonho macabro. Mas ainda não é agora. Primeiro você vai ter que sonhar que viu João Dória anunciando com um laboratório chinês a vacina para o coronavírus. Isso um dia depois de ser convidado a explicar por que comprou câmeras frigoríficas para cadáveres que não poderão ser guardados nelas. Pesadelo é pesadelo. A vacina chinesa do governador de São Paulo terá a participação do Instituto Butantã – que seguiu a linha do Imperial College de Londres e soltou projeções arbitrárias sobre a epidemia. Tudo para que o governador pudesse dizer, na ponta de um lápis imaginário, quantas vidas estava salvando com a quarentena totalitária. Nem a OMS, nem cientista nenhum no mundo tem essa fórmula. Mas sonho ruim é assim mesmo, só serve para empapar o lençol de suor.


E não adianta virar para o outro lado, porque vai vir um especialista crispado, enchendo a tela da TV, te dizer que há novos casos de coronavírus no Brasil porque o lockdown precisa ser mais asfixiante. Você vai gritar – e ninguém vai ouvir, como em todo pesadelo – que esse especialista é um irresponsável. Que ele está afirmando algo que a ciência desconhece. Que a comparação entre o Reino Unido e a Suécia joga essa certeza no lixo. Que esses tarados da quarentena burra expurgaram de suas equações delirantes o fator de contágio doméstico, atestado pela própria OMS.

Tudo em vão. Por mais que você berre, a sua voz não sai. Ninguém te ouve. E volta o apresentador funesto à tela da TV para dizer que a culpa é do velhinho que foi à padaria. Aí você grita que isso é uma leviandade, que em Nova York o grupo dos que circularam apresentou muito menos infecção que o grupo dos confinados. Você se esgoela para dizer que, depois de deflagrada a pandemia, a ideia de que a humanidade ia ficar trancada em casa deixando o vírus do lado de fora era uma miragem. Uma miragem terrível.

Mas, e daí? Você queria um pesadelo com miragem bucólica? Entre flashes difusos de Bruno Covas soldando as portas do comércio e recitando planilhas de urnas funerárias e sacos para cadáveres [confira no vídeo], surge um personagem que você não conhecia. Estamos tomando a liberdade de entrar no seu sonho para apresentá-lo: é Berbel, o Feiticeiro Multimídia, que está vendo o filme completo passando na sua cabeça e veio te ajudar a entendê-lo. Ouça as palavras de Berbel:
“Bastou um único comando – fique em casa – para o mundo inteiro parar ao mesmo tempo. E disseram que o vírus veio ajudar o ser humano a dar mais valor a si mesmo e ao semelhante que está ao seu lado. Mensagens lindas começaram a circular na internet sobre a oportunidade valiosa de aprender a viver com menos, de não precisar sair para trabalhar. Caberia aos governos finalmente exercer a bondade e prover o pão para os que não têm.”


Guilherme Fiuza, jornalista - Vozes - Gazeta do Povo


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Só a luta amada evita a ditadura - Fernando Gabeira

O Globo

Só a luta amada evita a ditadura

Pena que os militares tenham embarcado nessa canoa. São potenciais interlocutores. Conhecem bem o Brasil

Felizes com a ideia, todos se preparam, sabendo que o bastão há muito foi passado para as novas gerações. Não importa a importância do papel, o que importa é estar presente. Da minha parte, a situação é clara. No passado, deixei o país. Hoje, sinto que o país é que está me deixando, dissolvendo-se numa bruma viscosa, tornando-se irreconhecível.

Por isso, quando um grupo gaúcho sugeriu a ideia de uma luta amada, disse imediatamente que para mim caía como uma luva.
Durante muitos anos, ao lado de outros, construímos uma legislação ambiental para proteger nossos recursos naturais. Relatei, por exemplo, o projeto do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, conhecido como Snuc. Parece um nome de cachorrinho, Snuc, mas encerra uma realidade de florestas, montanhas, rios e manguezais que visito com frequência.

Quando vejo que estão querendo desmontar a legislação, aproveitando-se do nosso foco na pandemia, quando ouço que querem fazer uma boiada passar sobre a tenra grama de nossa rede de proteção, sinto claramente que estão nos levando o Brasil. Ao saber que Bolsonaro decapitou a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, apenas para atender ao dono da Havan, sinto um calafrio. É um homem que vendia produtos chineses e tem uma cadeia de lojas com uma cafona Estátua da Liberdade na porta.

O Iphan foi dirigido por intelectuais como Rodrigo Melo Franco, Aloísio Magalhães, e Bolsonaro escolheu agora a esposa de um dos seus seguranças, para tomar conta de 1.300 bens materiais e 25 mil sítios arqueológicos. Foi barrado pela Justiça Federal. Bolsonaro acha que nosso patrimônio se confunde com o que ele chama de cocô de índio cristalizado. Das estátuas do Aleijadinho às pinturas rupestres da Serra da Capivara, é desse rico conjunto que extraímos o sentido de identidade nacional e também postos de trabalho para muita gente. Passam com uma boiada sobre os bens naturais e com um bando de javalis sobre nossos bens culturais.

Pena que os militares tenham embarcado nessa canoa. São potenciais interlocutores. Conhecem bem o Brasil. O escorregadão geográfico do general Pazuello foi apenas um acidente isolado. Não sei se os militares estão usando Bolsonaro como um bode na sala, para depois se apresentarem como moderadores no pântano que ele criou. Ou se simplesmente se deliciam com o acúmulo de soldos e salários como os militares da Venezuela. Em ambos os casos, estarão perdidos para sua tarefa maior, a defesa nacional. Não importa quantos aparatos de guerra possam comprar, se não têm mais o respeito do povo brasileiro.

De que adianta entrar para o Ministério da Saúde e empilhar cadáveres com a naturalidade com que pintam as árvores de branco? Nossas populações indígenas estão sendo dizimadas pela Covid-19, nossa juventude negra massacrada pela opressão policial, nossas favelas organizam-se como podem para substituir um governo ausente na pandemia, ausente em todos os tempos. Só não saímos às ruas porque o vírus tem sido implacável com os mais velhos. Por mais que Bolsonaro arme seus aliados e os filhos lutem para trazer do exterior novos brinquedos de morte, é preciso viver um pouco. Na verdade, é preciso cautela nas ruas, pois todos precisam estar vivos. Cada um de nós que resiste é um pedaço do Brasil que pede socorro à humanidade, ao que resta de humano na humanidade.

Nem todos sabem como este país é grande, diverso, solidário, magnífico em sua beleza. Impedir que se dissolva nas mãos de vendedores de bugigangas, grileiros, racistas, incendiários é a grande tarefa de construir uma civilização tropical onde querem apenas pasto, fuzis, asfalto, carros e eletrodomésticos. Como não suprimir o “r” das lutas passadas e chamar isto de uma luta amada?
Como não compreender que todas as gerações pretéritas nos lembram de que o Brasil existe para todo o sempre, e que reinventá-lo depende de nós?

Fernando Gabeira, jornalista - O Globo


terça-feira, 26 de maio de 2020

São Paulo trancada – Editorial - Folha de S. Paulo

Carência de dados e sabotagem federal acentuam dúvidas sobre 'lockdown' em SP

Uma sombra se projeta sobre a maior região metropolitana do Brasil e seus 21 milhões de habitantes: o “lockdown”, paralisação total de atividades para conter a circulação do coronavírus. É duvidosa a probabilidade de vir a ser adotado, e menor a de funcionar a contento. 
Assim indica a dúvida do governador João Doria e do prefeito Bruno Covas, ambos do PSDB, que dividem responsabilidade sobre a Grande São Paulo. As medidas adotadas alcançaram até aqui o objetivo maior de impedir o colapso de serviços de saúde, mas tal espectro não se afastou por completo.

A capital paulista prossegue como epicentro da Covid-19 no país. Concentrava 13,4% dos casos e 16,2% dos óbitos nacionais anotados na quinta-feira (21), mas com indícios inconfiáveis de que a taxa de crescimento perdeu força nas últimas quatro semanas.  Não se viram na região metropolitana de São Paulo —ainda— cenas dantescas de cadáveres enfileirados em hospitais assoberbados por hordas de pacientes. Segundo estatística do governo estadual, os leitos de UTI permanecem, entretanto, no limiar preocupante de 90% de ocupação.

No estado, o índice se encontra em 73%, mas o avanço acelerado do vírus Sars-CoV-2 pelo interior e por bairros periféricos pode dizimar a cifra tranquilizadora. Por outro lado, reportagem desta Folha mostrou que, ao menos na capital, o levantamento sobre utilização de UTIs é errático e impreciso.  Embora a disseminação de testes diagnósticos em território paulista pareça ter diminuído a subnotificação de casos e mortes, na comparação com a média brasileira, governador e prefeito carecem, em realidade, de informações acuradas para fundamentar medida tão extrema. Daí os titubeios.

Numa declaração, Doria afasta o “lockdown”, como nesta segunda (25); noutras, ameaçou com eleCovas busca arremedos para contornar a providência, como as desastradas tentativas do bloqueio de avenidas e do rodízio estendidoO último recurso da dupla tucana para tentar baixar a circulação de pessoas e do coronavírus foi o megaferiado encerrado nesta segunda-feira (25). Os resultados foram modestos, pois o isolamento na capital subiu pouco, para 51%, ainda aquém do ideal de 70%.

[Nos causa dificuldade encontrar fundamentos na alegada sabotagem do Governo Federal.
O Governo Federal foi impedido de atuar de forma efetiva no concernente ao distanciamento social e isolamento, situação o resultante de decisão do STF atribuindo aquelas medidas como de competência dos estados e municípios.
O que se percebe é uma imensa incompetência do governador - que se perdeu, ameaça prisão, prender e arrebentar e não sabe o que fazer. Tudo que tenta fazer não funciona, inclusive Doria pensa mais em 2022 do que na pandemia.
Bruno Covas apesar de interesse em uma solução, as duas que tentou - mencionadas no parágrafo acima - foram desastrosas.
Para completar fez um discurso enaltecendo sua capacidade de providenciar enterros. Confirme, no vídeo.] 
Governador e prefeito temem o fracasso da iniciativa. Enfrentam a constante sabotagem [?]  do distanciamento social movida desde o Planalto e as dúvidas sobre o efetivo e a determinação da Polícia Militar. A Covid-19, contudo, desconhece os constrangimentos impostos pela politização da epidemia.

Editorial -  Folha de S. Paulo


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Cassação da chapa é o labirinto mais curto - Valor Econômico

Maria Cristina Fernandes


Se cabo, soldado e Centrão deixarem, bastam quatro votos no TSE

Das saídas constitucionais para o fim do governo Jair Bolsonaro, a da cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral é aquela que parece mais simples. Não carece de convencer o capitão a renunciar, nem de alargar o funil dos 343 votos necessários à chancela parlamentar para um processo de impeachment. Bastam quatro votos. [uma mudança constitucional via imprensa?] O caminho para esta maioria pró-cassação, porém, é de um sinuoso labirinto.

São seis os processos que correm no TSE. Tem de tudo lá, mas nenhuma das acusações agrega maior apelo hoje do que o disparo de mensagens falsas. Andam com o vagar próprio dos processos da Justiça Eleitoral, mas podem ser pressionados por duas investigações em curso. A primeira é aquela que apura a manipulação da investigação do desvio de verbas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro na campanha de 2018. Não tem repercussão processual para o TSE mas joga água no moinho da percepção de que um gol de mão contribuiu para o resultado eleitoral. Foi esta, aliás, a tese que prevaleceu no processo de impeachment de Richard Nixon, abreviado por sua renúncia.

[é general Mourão, estão querendo cassar o senhor de qualquer forma;
os inconformados com a não existência de um terceiro turno e cientes, ainda que traumatizados pelo inconformismo, de que com as bençãos de DEUS  a pandemia vai passar e o presidente Bolsonaro vai recuperar o rumo, intensificaram seus esforços idiotas e estúpidos para cassar o Chefe do Poder Executivo,
Pior ainda, sabem que não possuem, nem possuirão,  os 342 votos para abrir um processo de impeachment e caso conseguissem, caso o processo fosse aprovado e o presidente Jair Bolsonaro fosse impedido, o senhor assumiria. 
Para eles, que vivem em devaneios, é importante que o senhor não assuma e assim querem cassar o presidente e o vice-presidente.
A eles não importa que o senhor não tenha nenhuma culpa, tão pouco o presidente da República - agora tentam, em um gesto se imbecilidade típica do  'apedeuta' ex-presidente petista - associar suposto crime do senador Flávio Bolsonaro ao pai e associar o presidente ao vice.
O pior é  que ainda estão prontos a tentar fazer para tirar o presidente Bolsonaro,agora querem levar o senhor na mesma espanada.
Tudo começou com uns, mais apressados e imbecis,  tentando a solução 'adélio bispo', tentaram outras que sequer merecem uma citação, e agora chegam a solução estender culpabilidade do filho para o pai e do pai  para o vice-presidente.
Não causa surprese que enquanto aguardam um resultado, fiquem em pé sobre milhões de desempregados e milhares de cadáveres.
Abutres se sentem bem em tal ambiente.]

A segunda investigação é aquela conduzida, no Supremo Tribunal Federal, sobre a máquina de notícias falsas. Este inquérito pode vir a compartilhar provas com a Justiça Eleitoral, a exemplo do que aconteceu no processo que julgou a chapa Dilma Rousseff/Michel Temer. O inquérito é conduzido, a sete chaves, pelo ministro Alexandre de Moraes. Apesar de dispor de policiais federais para as investigações, apenas os juízes auxiliares e o delegado da Polícia Civil de São Paulo lotados em seu gabinete têm acesso ao conjunto de provas colhidas. O comando é de um ministro que, de tão obcecado por investigações, fez fama em São Paulo por chegar às 4h da manhã na sede da Secretaria de Segurança Pública, sob seu comando, para participar de operações policiais.

Com a saída da ministra Rosa Weber, na segunda-feira, Moraes assume um assento no TSE. Comporá, junto com Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, que presidirá o tribunal, a trinca de ministros do Supremo que atuarão como juízes eleitorais no restante do mandato presidencial. A nova composição do TSE impulsionou a campanha de 100 entidades que atuam no campo da corrupção eleitoral (reformapolitica.org.br) pela agilização dos processos que hoje correm no TSE. Esta campanha pode dar amplitude ao que hoje está restrito a alguns gabinetes brasilienses. É uma articulação ora favorecida pela reaproximação de antigos adversários, como os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, ora contida por espantalhos como o artigo do vice-presidente Hamilton Mourão atacando as instituições.

Ao contrário do que se passou por ocasião do julgamento da chapa Dilma/Temer, em que a cassação foi derrotada por 4x3, os carpinteiros da tese da separação da chapa, hoje estão de quarentena. Se for para cassar, que seja o presidente e seu vice. Por isso, o artigo de Mourão assustou.  Ao proteger o titular do cargo e bater em todas as demais instituições da República, o vice-presidente, na leitura dos artífices da “saída TSE”, buscou blindagem das Forças Armadas contra qualquer desfecho que o alije. A ocupação do Ministério da Saúde e a negociação com o Centrão hoje são vistos como um sinal de que, seja com Bolsonaro, seja com Mourão, os militares não pretendem arredar pé.

As dúvidas não se limitam à reação da farda em relação à cassação da chapa. Estende-se à composição do TSE. Ao contrário do tribunal que inocentou Dilma e Temer, aquele que estará empossado a partir de segunda-feira, conta com três ministros do Supremo que não são de sentar em cima de provas. Três ex-ministros do TSE, em anonimato, concordam que o quarto voto não viria de nenhum dos dois ministros do Superior Tribunal de Justiça com assento na Corte eleitoral. O mandato do atual relator, Og Fernandes, se encerra em agosto. Como Fernandes também é o corregedor da Casa, o processo ficará com o futuro ocupante do cargo, o também ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, que passará a ter, como colega, também no TSE, Mauro Campbell. Nenhum dos dois desfruta, em Brasília, da mesma reputação do independente Herman Benjamin, o ministro relator do processo Dilma/Temer que votou pela cassação. Sobre Salomão pesam ainda as expectativas de que ambiciona uma vaga no Supremo, situação que o deixaria em pé de igualdade com o procurador-geral Augusto Aras na condição de personagens-chave a quem o presidente poderia buscar atrair com as duas vagas que terá a preencher até julho de 2021.

Ainda que ambos venham a jogar no time anti-cassação, o quarto voto poderia ser buscado nos dois advogados do tribunal. A expectativa de recondução ao cargo, prerrogativa do presidente da República, pode vir a inibir um deles (Sergio Banhos), mas é inócua em relação ao segundo (Tarcísio Vieira), que está no último mandato na Corte. Somados os quatro votos, restaria ainda a dúvida sobre o prosseguimento do processo com um relator que venha a se mostrar desinteressado no desfecho. Os percalços não param por aí. A lei diz que se a chapa é cassada no primeiro biênio do mandato presidencial, faz-se nova eleição. Se for no segundo, convoca-se eleição indireta, em até 90 dias. “Na forma da lei”, diz a Constituição. Lei esta que não existe. Teria que ser formatada e votada em pontos sensíveis, como desincompatibilização e filiação partidária, em meio ao caos de uma pandemia que, além de vidas, também vitima o bom combate da política.

E, finalmente, o processo de escolha de um presidente-tampão seria conduzido pelas futuras mesas da Câmara e do Senado, a serem escolhidas num Centrão repaginado pelo bolsonarismo, visto que os mandatos de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre se encerram em fevereiro. A pergunta de um ex-ministro do TSE resume o drama: “Quanto custaria esta eleição”? Se a pedreira é tão grande, por que a “opção TSE” continua sobre a mesa? Porque todas as demais saídas parecem tão ou mais difíceis. A ver, porém, se os percalços permanecerão em pé se o país, no balanço dos milhares de mortos e milhões de desempregados, decidir que não dá para seguir adiante sem afastar o principal culpado.

Maria Cristina Fernandes, colunista - Valor Econômico


quarta-feira, 8 de abril de 2020

Hamburgo, 1892 - No século 19, negacionismo dos notáveis de Hamburgo durou pouco, até elite ser vítima da doença - Elio Gaspari

Folha de S. Paulo - O Globo

O andar de cima sabia mais, e assim a cólera matou 10.000 pessoas na última epidemia do bacilo na Europa


No século 19, negacionismo dos notáveis de Hamburgo durou pouco, até elite ser vítima da doença     

Há os conservadores e há os atrasados, mas os comerciantes e banqueiros de Hamburgo achavam que eram conservadores iluminados, mas eram também atrasados. Em agosto de 1892, a cidade era administrada pela plutocracia local. Tinha o maior porto da Alemanha e macaqueava os ingleses. Morreu gente nos bairros pobres, mas não podia ser cólera, pois essa peste já teria sido controlada na Europa. 

A cidade tinha lindos prédios, mas não havia começado a obra para tratar sua água. Em 1871 seus notáveis haviam recusado a obrigatoriedade da vacina contra a varíola, porque ofenderia o direito das pessoas. (33 anos depois, Rui Barbosa usou o mesmo argumento, estimulando a rebelião de alguns militares e a maior revolta popular do Rio de Janeiro.) Tudo em nome dos princípios do liberalismo político e econômico que administrava a cidade.

Os plutocratas de Hamburgo acreditavam que a cólera disseminava-se por miasmas do ambiente, mais perigosos nos bairros de gente pobre e suja. Nove anos antes, o médico Robert Koch havia demonstrado que a cólera era transmitida por um bacilo e circulava com a água. Como eles acreditavam nos vapores, recusaram-se até a endossar a obrigatoriedade de fervê-la. (Em 1904, quando Oswaldo Cruz fumegava as casas do Rio para matar o mosquito da febre amarela, vários médicos ilustres insistiam na teoria do miasma.)

Até o verão de 1892 os plutocratas de Hamburgo entendiam que tudo dependia da higiene individual. O negacionismo dos notáveis durou pouco, até que começou a morrer gente no andar de cima. A imprensa havia evitado o assunto e a imediata instituição de uma quarentena foi descartada, pois prejudicaria os negócios. Quando as ruas estavam tomadas por cadáveres, o governo de Berlim mandou Robert Koch a Hamburgo e ele contou: “Senhores, eu esqueci que estava na Europa”. Oito anos antes, Nápoles, velha cidade insalubre com seu porto, havia derrubado a cólera com uma quarentena.

Uma médica americana que estava em Hamburgo escreveria: “Treze epidemias leves não haviam conseguido mostrar aos governantes da cidade que deveriam botar a casa em ordem.” A história dessa epidemia, com dez mil mortos, foi contada pelo historiador inglês Richard Evans (“Death in Hamburg: Society and Politics in the Cholera Years, 1830–1910.” De 1988, infelizmente só existe em papel.)

Sir Richard evitou atribuir o desastre a um mero interesse econômico. Ele foi mais fundo, mostrando que as opiniões dos médicos não são autônomas, mas têm raízes e funções sociais. Os donos das teorias do miasma eram médicos, como o doutor Osmar Terra. Aos 72 anos, numa entrevista ao repórter Isaac Chotiner, Evans rebarbou a teoria segundo a qual ditaduras e democracias lidam com epidemias de maneiras diferentes.

“[Epidemias] exigem grandes intervenções dos governos. Seja qual for a sua forma, seja qual for o tipo do Estado ou o partido que está no poder. De certa maneira, é a epidemia quem dá as cartas.”  Hoje, na praça em frente à Bolsa e à prefeitura de Hamburgo, um monumento lembra os mortos da epidemia de cólera. Ele foi esculpido em 1896. Oito anos depois, no Brasil, ainda se falava em miasma. O presidente Rodrigues Alves e o médico Oswaldo Cruz tiveram que enfrentar uma revolta contra a vacina obrigatória. Grande presidente, esse Rodrigues Alves.

Folha de S. Paulo - O Globo - Elio Gaspari, jornalista


domingo, 5 de abril de 2020

A guerra invisível - Nas entrelinhas


“A epidemia atingiu primeiro a classe média alta, disseminada por pessoas que viajaram ao exterior. Com a transmissão comunitária, chegará aos pobres”


Não me saem da cabeça as cenas dos médicos e paramédicos combatendo as epidemias na África
Qual é a semelhança com o novo coronavírus (Covid-19)? 
A febre hemorrágica Ebola é uma doença muito mais grave, com taxa de letalidade que pode chegar até os 90%, enquanto a do coronavírus gravita em torno dos 5%. É uma zoonose cujo reservatório mais provável é o morcego
O vírus foi transmitido para seres humanos a partir de contato com sangue, órgãos ou fluidos corporais de animais infectados, como chimpanzés, gorilas, antílopes e porcos-espinho, na África subsaariana, ocasionando surtos esporádicos.

O novo coronavírus foi identificado pela primeira vez na China, é transmitido pelo ar e pelo contato físico, de forma muito mais rápida, antes mesmo de as pessoas manifestarem os sintomas da doença. Presume-se também que o hospedeiro de origem seja algum espécime de morcego. Os coronavírus humanos mais comuns causam infecções respiratórias de brandas a moderadas, de curta duração. Os sintomas podem envolver coriza, tosse, dor de garganta e febre. O novo coronavírus é mais letal, porque também ataca violentamente as vias respiratórias inferiores, como pneumonia. Esse quadro é mais comum em pessoas com doenças cardiopulmonares, com sistema imunológico comprometido ou em idosos.

A transmissão do Ebola se dá por meio do contato com sangue, tecidos ou fluidos corporais de animais e indivíduos infectados (incluindo cadáveres), ou a partir do contato com superfícies e objetos contaminados. Não há registro na literatura de isolamento do vírus no suor e pelo ar. É possível detectar os infectados com mais facilidade, porque a transmissão não ocorre sem os sintomas: febre, cefaleia, fraqueza, diarreia, vômitos, dor abdominal, inapetência, odinofagia, manifestações hemorrágicas. Por isso, foi possível isolar o Ebola geograficamente e evitar uma pandemia.

Até hoje não existe vacina e nem remédio específico para tratar o Ebola. Os cuidados são de suporte precoce com hidratação e tratamento sintomático, como no coronavírus. O tratamento se restringe ao controle dos sintomas e suporte/estabilização do paciente. Iniciar o tratamento de maneira oportuna aumenta as chances de sobrevivência dos pacientes. Uma vez que a doença foi curada, a pessoa está imune ao Ebola.

Camuflagem
Não se sabe se os pacientes curados do coronavírus estarão imunizados contra uma nova epidemia. Os pesquisadores ainda estudam as formas de transmissão, mas a disseminação de pessoa para pessoa, ou seja, a infecção por gotículas respiratórias ou contato, é uma guerra na qual não se sabe onde o inimigo se esconde, até que a pessoa infectada manifeste a doença. A maioria não tem sintomas aparentes. É como se a força atacante principal fosse formada por soldados com a camuflagem mais perfeita, entrincheirados numa pessoa igual às outras, às vezes um membro da própria família, dentro de sua própria casa.

Gotículas de saliva, espirro, tosse, catarro; toque ou aperto de mão; objetos ou superfícies contaminadas, seguido de contato com a boca, nariz ou olhos são como granadas e tiros. A vida social é um campo minado. Eram inimagináveis as cenas de colapso do sistema de saúde da Itália e da Espanha, com grande número de mortos. Muito menos que grandes potências, como França, Inglaterra, Alemanha e Japão, corram o risco de um Efeito Orloff: eu sou você amanhã. Com todo o seu poder econômico, os Estados Unidos contabilizaram 4,5 mil mortos somente no último sábado. Vejam bem: são países que nem de longe se comparam ao sul do Sudão e ao norte da República Democrática do Congo, na bacia do Rio Ebola.

No Brasil, a epidemia atingiu primeiro a classe média alta, disseminada por pessoas que viajaram ao exterior. Com a transmissão comunitária, agora chegará às parcelas mais pobres da população, exatamente aquelas que, em certas regiões, vivem em condições muito precárias e estão enfrentando mais dificuldades para sobreviver com a política de isolamento social. O número de casos está subnotificado, muitas pessoas estão morrendo com síndrome respiratória aguda sem serem diagnosticadas. Na América Latina, o pior cenário até agora é o do Equador, cujo sistema de saúde entrou em colapso: pessoas morrem sem assistência médica e são incineradas nas ruas, por cidadãos em pânico.

O risco que corremos não é de assistir a cenas iguais às da Italia e da Espanha, muito menos norte-americanas. É de um cenário igual ao do Equador, se a política de isolamento social for revogada pelo presidente Jair Bolsonaro, como ele ameaça, contra a orientação do seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Nosso sistema de saúde não tem condições de absorver a rápida elevação do número de casos de coronavírus que isso provocaria. Não foi à toa que a Câmara dos Deputados aprovou a proposta de emenda à Constituição que cria um orçamento paralelo, chamado de “orçamento de guerra”, para destinar recursos exclusivos às medidas de combate ao coronavírus. Estamos dormindo com o inimigo.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - Correio Braziliense


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Esqueletos no armário - Fernando Gabeira

Correndo de praia em praia, seguindo a mancha de óleo no Nordeste, tive uma noite livre para pensar na política nacional.  Dizem que é nova política. Não sei se tenho condições de entendê-la. Mas o exame da política de sempre é o critério que tenho para analisar esses fatos. Na minha tosca enciclopédia, dois verbetes dariam conta da fúria de Bolsonaro contra um ciclista e a divisão desse estranho partido que é o PSL: esqueletos no armário e racha, entendido aqui como a cisão num grupo partidário.

Esqueletos no armário podem ser cadáveres reais ou mesmo episódios que governos ou partidos querem ocultar porque a transparência, nesse caso, é indesejável. Fabrício Queiroz é um esqueleto no armário. Há muitas formas de tratar disso. Bolsonaro parece ainda inexperiente no assunto. Ao gritar que Queiroz estava com a mãe do ciclista, ele apenas usou a pior tática: chacoalhar os ossos e chamar a atenção de todos para o esqueleto rangendo contra a madeira.
Esqueletos no armário são corrosivos. Os ultrafiéis não se importam, talvez nem acreditem que essas coisas aconteçam nos bastidores. Há um grupo que simplesmente aceita, com o argumento de que o objetivo é maior e que essas coisas acontecem mesmo em todos os partidos.

Mas essa concordância entra em colapso quando o chamado objetivo maior não se realiza. Manter os esqueletos silenciosos no armário é uma tarefa difícil também a longo prazo. Bolsonaro, diga-se a seu favor, não é dos mais brilhantes na tarefa.
Outro tema que me interessou foi a história de um possível racha no PSL. É o partido de Bolsonaro, e ele disse que é preciso esquecê-lo. Disse ainda que o presidente do partido estava queimado para caramba. É um partido que movimenta milhões. E brigas partidárias, apesar de sua natureza diferente, lembram separações conjugais: quem fica com o quê?

No nosso movimento estudantil, os rachas, quando aconteciam, sempre desfechavam uma disputa em torno do mimeógrafo. Bem mais poético que agora. Não há grandes divergências ideológicas no PSL. Não há correntes de pensamento definidas. São indivíduos e suas carreiras políticas. Se houvesse espaço, avançaria em outro verbete da tosca enciclopédia: as bancadas eleitas pelo populismo. São heterogêneas, compõem-se de gente que expressa proximidade com o líder, repete um ou outro dos seus slogans, e pronto. Imagine o que acontece quando se injetam milhões de reais num agrupamento com essa consistência política? [por enquanto, não há resposta para essa política;
sabemos apenas que quando se injeta alguns milhares de reais, o resultado é quase 60.000.000 de votos.] Não se trata mais de discutir quem fica com o quê, depois de uma divergência ideológica.  Nesse caso, o dinheiro é a própria razão do conflito. Dinheiro público, pois acabou o financiamento privado.

Nos partidos chamados nanicos, o fundo oficial é uma espécie de vaquinha que alimenta os dirigentes, consegue mantê-los com uma renda pessoal. Mas quando a soma é gigantesca, em R$ 350 milhões, como no PSL, é certo que vão se dilacerar para decidir quem gasta o quê, campanhas vão florescer; outras, submergir. Sempre tive essa intuição sobre a briga atual do PSL. Temia, no entanto, supersimplificar. Afinal, é possível que tenham ideias. Ganhei um pouco de coragem para enunciá-la porque no momento em que perguntaram a Bolsonaro qual era o problema do PSL, ele respondeu: é o tesoureiro.

No tempo em que, diante da complexidade de governar o país, o problema do partido dominante é o tesoureiro, meu tosco arsenal carece de atualização. Faltam categorias. Esperava que o líder populista entrasse em conflito com sua base pantanosa. Pensei em infidelidade partidária, em choque de egos.  O tesoureiro me escapou. Tesoureiros de partidos costumavam ser presos, em tempos de financiamento privado. Agora, são o objeto de desejo. A nova política não se cansa de me surpreender. Embora se diga defensora de valores tradicionais e prometa uma volta ao passado num mundo que se transformou profundamente, o seu tema central, no fundo, é o mais prosaico: dinheiro. Aliás, ele é também a causa do ruidoso esqueleto no armário. Não apenas por ofensas ao ciclista. Os ossos rangem estrepitosamente desde o momento em que Toffoli proibiu a cooperação entre receita e órgãos investigativos. É uma espécie de grito: há alguma coisa errada entre nós; logo, suprimam-se as investigações.

Artigo publicado no jornal O Globo em 14/10/2019

Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista 


domingo, 2 de junho de 2019

Massacre em Manaus - O que está por trás das mortes de 55 detentos em uma guerra de facções pelo tráfico de drogas

A matança de 55 detentos por causa de uma guerra de facções no Amazonas mostra que os presídios brasileiros são verdadeiras bombas-relógio

[é desagradável colocar nos termos abaixo, mas, não podemos ser hipócritas, já que com certeza cada um se pergunta, ainda que no seu íntimo : a sociedade perdeu alguma coisa com essas mortes?]


De tempos em tempos, um presídio brasileiro amanhece coberto de cadáveres. A superlotação somada à guerra entre facções criminosas pelo domínio do tráfico de drogas costuma ser o disparador dessas matanças. A última aconteceu em Manaus, cidade notabilizada pelas cadeias especialmente violentas. Cinquenta e cinco presos foram mortos em uma ação orquestrada que se desenvolveu em quatro presídios do município entre domingo e segunda-feira 27, se prolongando por 48 horas. A maior parte das mortes foi causada por asfixia provocada por um mata leão ou outra forma de enforcamento. Quarenta detentos morreram assim dentro das celas. Outros foram perfurados com uma pequena lança feita com escova de dente. Os presos afiam a ponta do cabo da escova e a transformam numa arma mortífera.

Um relatório produzido pelo setor de inteligência do governo do Amazonas para a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) revelou que, desde o dia 22, se sabia que algo terrível estava prestes a acontecer nas cadeias do estado por causa de uma disputa interna pelo comando da Família do Norte (FDN), facção que lidera os presídios do Amazonas e controla o tráfico de cocaína no Rio Solimões. Pelo Solimões, chega a droga peruana e colombiana que abastece as regiões Norte e Nordeste. O relatório indicava que pelo menos 20 presos estavam marcados para morrer. Antecipando-se ao confronto, a Seap montou um plano de contingência e fez a transferência de alguns presos que seriam possíveis vítimas do Centro de Detenção Provisória Masculino 1 (CDPM- 1) para outras unidades prisionais e manteve o Grupo de Intervenção Penitenciária (GIP) de prontidão para agir diante de qualquer imprevisto. As medidas, porém, não foram suficientes para evitar a chacina. Quando as forças de segurança chegaram nas celas encontraram os presos mortos.

A matança foi disparada pelo confronto entre dois grupos da FDN, liderados por José Roberto Barbosa, o Zé Roberto da Compensa, e João Pinto Carioca, o João Branco, que divergem em relação a aproximação com o Comando Vermelho (CV). A FDN é considerada hoje a terceira facção mais forte do País, atrás do PCC (Primeiro Comando da Capital) e do CV e se destaca pela crueldade. Os quatro presídios em que os homicídios ocorreram foram o CDPM-1 (5 mortos), a Unidade Prisional de Puraquequara (6), o Complexo Penitenciário Anísio Jobim, Compaj, (19) e o Instituto Penal Antônio Trindade (25). No domingo aconteceram 15 mortes e na segunda-feira, 40, mesmo com os presos trancados nas celas e as visitas suspensas.

A nova atrocidade em Manaus tem a mesma escala que a registrada em janeiro de 2017, quando 56 presos foram mortos no Compaj, em uma das maiores carnificinas já vistas nas cadeias brasileiras. A rebelião se prolongou por 17 horas e os presos mortos foram degolados e esquartejados. Até o muro que dividia os pavilhões do presídio foi bombardeado. Na ocasião, estavam em choque a FDN e o CV. Desde 2016 foi registrado pelo menos um massacre em presídios por ano no País. Em janeiro de 2018 houve uma matança na Cadeia Pública de Itapajé, no Ceará, onde dez homens foram assassinados. Em 2017, foi a vez de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, que teve 26 mortos.

Para o diretor da ONG Conectas, Marcos Fuchs, o que acontece em Manaus é fruto da ausência de um plano eficaz de política pública, que deveria ser estabelecido pelo Ministério da Justiça para aumentar a segurança nos presídios e “mudar a situação atual de barbárie”. “Não existe no Brasil a presença do Estado dentro dos presídios, o que há é um controle paralelo de facções criminosas”, afirma. “As facções dominam o sistema prisional desde a entrada da pessoa que acabou de furtar uma maça, ou estava fumando maconha e foi preso como traficante, e usa essa gente para formar um exercito cada dia maior e mais poderoso. Nossa política de encarceramento em massa é nefasta, completamente errada e condena gente que ainda nem foi julgada.”

Do total de mortos em Manaus, 11 (20%) eram presos provisórios que ainda não tinham sido condenados pela Justiça. Num contingente de 700 mil presos no País, 45%, segundo Fuchs, são provisórios. O que deveria ser exceção está se transformado em regra. Outro problema em Manaus é a superlotação: os presídios estão funcionando com mais do que o dobro de sua capacidade. No Compaj, por exemplo, cabem 454 presos, mas atualmente há 1119. A Força Nacional já vem dando apoio ao sistema penitenciário amazonense há vários meses, mas sua atuação se restringe ao policiamento ostensivo no entorno das penitenciárias. Agora, diante da matança, o governo federal decidiu enviar o reforço da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária, que atua junto com os agentes carcerários. O que se espera é que as chacinas sejam contidas. [a superlotação é inevitável: a polícia tem o DEVER de prender os bandidos e a Justiça o DEVER de condená-los.
A única solução está na construção de presídios estilo 'campo de concentração'  ou 'gulag' na Selva Amazônica - nos moldes, apesar de estar em uma região tropical -  da Sibéria.
Nos presídios, que poderiam ser adaptados para 'campos de trabalho', manter os presos isolados de contato com o mundo exterior seria mais fácil, as visitas ocorreriam de forma rara.
A distância desestimularia tentativas de fugas e/ou rebeliões.]

Vicente Vilardaga e Fernando Lavieri - IstoÉ 

 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Traficante ofereceu R$ 100 mil de propina em operação no Fallet, diz comunicado de batalhão

[para parte da imprensa, a polícia está sempre errada e são posturas desse tipo - contra a sociedade, contra a força policial e a favor do bandido - que fortalece a criminalidade; 

quanto ao tenente é comum que interrogatórios enérgicos serem confundidos com tortura. Mas, com firmeza e convicção que a Justiça seria feita o agora capitão ganhou a batalha.

Felizmente, desta vez nenhum policial tombou; , só bandidos foram abatidos. Quanto isso se tornar rotina a criminalidade cai. Mais uma vez, os bandidos tem o poder de decidir se querem que a criminalidade caia por fuga deles ou por faltar bandido a ser abatido.

Quanto morre um policial 'ganha' da imprensa uma notinha em canto de página, quando são bandidos são chamados de vítima e os policiais são apontados como assassinos.]

Um traficante ofereceu R$ 100 mil aos policiais do Batalhão de Choque (BPChq) para não ser preso durante a operação nos morros da Coroa, Fallet e Fogueteiro e dos Prazeres, em Santa Teresa e no Catumbi, no Centro da cidade, na última sexta-feira. A informação é de um comunicado publicado no perfil oficial do Choque.
“Na tentativa de ser liberado, o número 02 na hierarquia do tráfico daquela localidade tentou subornar os Policiais do Choque, oferecendo R$ 100 mil em propina, como consta nos autos”, diz o texto. 

O homem chamado de 02 é Gilmar Douglas Quintanilha Braz, conhecido como “Gilmarzinho”, de 32 anos. Ele é um dos 11 presos da operação e já foi detido em 2013, acusado de associação ao tráfico. Dois anos depois, foi liberado. O caso está registrado na Delegacia de Homicídios (DH). A assessoria de comunicação da Secretaria de Polícia Militar informou que, no entanto, a denúncia de tentativa de suborno não foi acatada pela Polícia Civil.  Segundo a PM, há uma guerra entre facções na região. No início da semana, integrantes do Comando Vermelho, que domina as bocas de fumo nas favelas Fallet, Fogueteiro e Prazeres, invadiram o Morro da Coroa. A área, até então, era dominada pelo Terceiro Comando Puro. Nos últimos dias, houve diversos confrontos entres os traficantes envolvendo essas duas comunidades.

O Batalhão de Choque afirmou, ainda em comunicado pelo Instagram, que “a denúncia anônima de um cidadão cansado da opressão e do jugo de marginais da lei foi fundamental para atuação da PM”. Foi a partir dela que os agentes encontraram a residência onde dez dos 13 mortos estavam. De acordo com a polícia, todos teriam ligação com o tráfico. Parentes disseram que os baleados na operação tinham ligação com o tráfico, mas acusaram a polícia de execução. Segundo eles, os que foram mortos no Fallet haviam fugido para a casa da Rua Eliseu Visconti quando o Batalhão de Choque chegou. Imagens registradas dentro do imóvel mostram cadáveres no chão antes de serem colocados na caçamba de viaturas e socorridos. 

Condenado por tortura, tenente da PM retorna à corporação e é promovido a capitão
Os caminhos e descaminhos da carreira de um oficial da Polícia Militar contam uma história que poderia ser uma lição para estudos de direito. Investigado e condenado por tortura, por uma acusação de 16 de fevereiro de 2004, o tenente Djalma dos Santos Araújo não se deteve com os martelos dos tribunais. Passados 15 anos, ele, depois de ser demitido, conseguiu não só voltar à PM como passou, em dezembro de 2018, de tenente a capitão.

O trajeto da condenação até a mudança de patente foi longo, mas Djalma persistiu. Tudo começou quando foi acusado de ter entrado, com outros cinco policiais, na casa de Nelson Souza dos Santos, de 31 anos. Era uma busca por armas e drogas. O morador contou, depois, que colocaram um saco plástico em sua cabeça e lhe deram choques. Dedos, mamilos e lábios foram apertados por alicates. E,por fim, foi empalado com o uso de um cabo de vassouraEm dois anos, todos foram condenados. Mesmo assim, Djalma se manteve na ativa. O Conselho de Justificação da Polícia Militar, que conduz o processo administrativo para avaliar a conduta do oficial e pode expulsá-lo da corporação, foi instaurado logo depois do crime. Em dezembro de 2005, a própria Secretaria de Segurança encaminhou ao Tribunal de Justiça — órgão responsável pela decisão do conselho — um primeiro parecer do conselho recomendando a demissão do oficial. Aparentemente, tudo correria muito rapidamente.

Na Justiça, foram quatro anos, o que não chega a ser incomum para o andamento de processos. Em 2009, desembargadores da Seção Criminal do tribunal do Rio decidiram que Djalma era “indigno ao oficialato”. O tenente recorreu e perdeu todos os recursos possíveis até 2014, quando não havia mais instâncias superiores a que apelar. O Conselho de Justificação tinha chegado ao fim. Em 2015, sua demissão foi finalmente assinada pelo governador Luiz Fernando Pezão. Djalma não cedeu. Logo depois da canetada final, entrou com um mandado de segurança contra o estado, argumentando que seu Conselho de Justificação durou mais tempo do que o permitido por lei. Tinham se passado dez anos, entre o início do processo e a decisão final da Justiça. Pelas regras, o processo todo só pode levar, no máximo, seis anos.

A reviravolta se desenhava ali, naquele argumento. Em maio de 2016, os desembargadores do Órgão Especial do TJ, por unanimidade, determinaram que Djalma fosse reintegrado à PM.  Mas Djalma queria mais, sua ambição era ser promovido, fazer andar sua carreira de oficial. Alguns oficiais de sua turma já eram majores. Djalma, que amargou a sentença, tinha parado no tempo. Ele então alegou que “a reintegração não ocorreu de forma plena”. Em outubro do ano passado, o então presidente do Tribunal de Justiça, Milton Fernandes de Souza, lhe deu razão: “promoções são consectários lógicos decorrentes de sua reintegração”, escreveu. No dia 10 de dezembro, o Diário Oficial estampou a promoção de Djalma a capitão “pelo critério de antiguidade”.  No dia do crime, Nelson chegou ao Hospital Municipal Miguel Couto urinando sangue. Os médicos tiveram que reconstituir sua bexiga e seu canal retal. O laudo de exame de corpo de delito detectou lesões no pescoço, no antebraço e na região mamária, acusando asfixia e tortura.

No depoimento à Justiça, ele apontou um dos policiais que estavam com Djalma como o que “enfiou o cabo de vassoura em seu ânus” e disse que “teve um saco plástico colocado em seu rosto, enquanto apertavam o seu gogó, que pegaram o fio da televisão e lhe deram choques no rosto e nas nádegas”. Parentes da vítima viram Djalma na casa naquele dia e o reconheceram como um dos torturadores. Os agentes não negaram que foram ao local, apenas disseram não ter agredido a vítima.

À Justiça, o comandante do 1º BPM (Estácio) — unidade onde eram lotados à época —, tenente-coronel Marcos Alexandre Santos de Almeida, defendeu seus policiais. Ele contou que, cinco dias antes do crime, um PM havia sido morto no Morro da Coroa, e, por isso, intensificou as operações. Segundo ele, o fato “certamente teria trazido desconforto e desagrado aos criminosos que ali atuam”. Em seguida, o oficial tentou convencer a juíza de que a tortura havia sido praticada por traficantes, “porque a vítima estaria colaborando com o trabalho policial”. Já o subcomandante do batalhão, tenente-coronel, Álvaro Sérgio Alves de Moura, disse que a morte do PM causou “comoção e sentimento de revolta nos demais policiais”.



Familiares enterram, neste domingo, vítimas de operação policial no Fallet Fogueteiro
Chacina e massacre foram as palavras usadas pelos moradores dos morros do Fogueteiro e Prazeres que estiveram, neste domingo, no Cemitério São João Batista, para enterrar os amigos e parentes mortos durante a operação policial realizada na última sexta-feira. Com 12 velórios programados, as capelas tiveram que ser compartilhadas. E em mais de um caso, uma mesma família chorou mais de uma perda.
Ao lado da capela onde eram velados Vitor Hugo Santos Silva e Roger dos Santos Silva, a família de Maikon e de David Vicente da Silva lamentavam. Na sala seguinte, estavam os primos Felipe Guilherme Antunes e Enzo Souza Carvalho.
— Eles foram executados, não tiveram chance de nada — disse um parente de Roger e Vitor Hugo: — A gente sabe que eles estavam em más companhias, mas eles se renderam. Como isso pode ser uma troca de tiros se nenhum policial sofreu nada?
Segundo moradores, todas as vítimas tinham entre 15 e 22 anos, reforçando a desconfiança da versão apresentada pela polícia.
— Eles querem acabar com uma geração antes que eles possam virar chefes do tráfico, mas não é assim que se faz as coisas. Cadê as escolas, os orfanatos, os programas sociais?

Sob um sol escaldante, as roupas pretas usadas contrastavam com cartazes coloridos confeccionados para denunciar a ação da polícia e esconder os rostos de quem tem medo de represálias. Os dizeres acusavam a existência de um "tribunal da morte da PM" e pedidos de paz.
Segundo parentes e vizinhos dos irmãos Maikon e David, os dois estavam dormindo em casa quando foram abordados pelos policiais.
— Eles encontraram um baseado, e começaram a esculachar os meninos, deram tiro na perna. A gente ouviu, mas não podia fazer nada, senão viriam para cima da gente — disse um vizinho. [dormindo??? sempre eles são os inocentes; os próprios familiares reconhecem que eram bandidos - admitem que eles andavam em más companhias'. Afinal, bandido bom é bandido morte - agora eles são praticamente santos.]
A avó dos dois contou que, dias antes, o neto relatou que queria mudar de vida e casar com a namorada:  — Dias antes de morrer, ele me disse: "não se aperreia não, vó, a gente não fez nada de errado. Não vai acontecer nada com a gente". E hoje estou chorando pelos meus netos. Quantas mães mais vão precisar passar por isso?

A mãe de outro rapaz morto na sexta-feira contou que o filho estava com afundamento no crânio, e teve a barriga aberta por uma faca. Ela ainda denunciou o assédio policial depois do ocorrido, em visitas feitas a sua casa.  — Eles jogaram spray de pimenta no meu mais novo, que só tem 8 anos. E ainda zombaram, dizendo: bem-feito que o irmão dele morreu.

Ainda segundo moradores dos morros, policiais militares estiveram, neste domingo, na porta do São João Batista, fotografando quem compareceu aos velórios. Para amanhã, outros dois enterros estão programados, de jovens cujos corpos foram resgatados na mata por moradores. Embora o número oficial seja de 13 mortos, nas contas dos moradores são ao menos 16.
A mãe de Mateus Diniz, que tinha 22 anos e dois filhos pequenos, contou que foi a nora quem sentiu a falta dele. As duas então peregrinam pelo Hospital Souza Aguiar e pelo Instituto Médico Legal, sem sucesso. Foi quando os moradores se organizaram para buscar os corpos na mata, onde três rapazes foram encontrados.
— Todo dia que tem operação é isso. Mas essa não é a solução. Mesmo no caso de um criminoso: lugar de bandido é na cadeia, não no cemitério — disse o amigo de uma das vítimas. [se vão para a cadeia a turma dos DIREITOS DOS MANOS logo arruma uma forme de soltar.]

Extra