Há cada vez mais pessoas que nunca receberam um único voto na vida, e não têm mandato nenhum, dizendo o que o cidadão deve ou não deve fazer
Nos jogos do campeonato brasileiro de futebol tornou-se praticamente obrigatória a observação de um minuto de silêncio antes de cada partida, em homenagem aos mortos da covid-19. É um hábito mundial; na última rodada da Premier League, por exemplo, houve até música fúnebre, executada por orquestra e dramatizada por soldados com uniforme tipo “guarda real”, em posição de sentido. É uma prova a mais de que governos em geral e o seu exército de burocratas, médicos assustados e um público ansioso por receber ordens de cima transformaram a tragédia trazida pela epidemia numa espécie de ato de heroísmo. Os mortos pela covid, pelo que se pode deduzir, estão valendo mais que os mortos por outras doenças; têm direito a minuto de silencio e banda marcial, enquanto os demais não têm direito a nada além do próprio enterro.
Neste ano de 2020, do dia 1º de janeiro até as 15 horas em ponto do dia 12 de novembro, as doenças cardíacas mataram no Brasil mais de 350.000 pessoas — 350.122, para ficar nos números exatos, contra os 160.000 que morreram até agora de covid.
Não se trata de informação vinda de nenhum desses Condomínios de Administração da Verdade que se multiplicam por aí.
São os números oficiais do “Cardiômetro” da Sociedade Brasileira de Cardiologia, que registra em tempo real, segundo a segundo, as mortes causadas por moléstias cardiovasculares no país.
São cerca de 1.000 mortes por dia, ou uma a cada 90 segundos. É simplesmente o dobro das mortes motivadas por todos os tipos de câncer; nenhuma outra doença mata mais gente, no Brasil ou no mundo.
Você não vai ouvir um minuto de silêncio em homenagem a essas 350.000 vítimas (o total vai bater em quase 400.000 até o fim do ano), nem qualquer outra demonstração de simpatia oficial, particular ou científica. Da mesma forma, não é motivo de nenhum interesse o número de mortos por câncer, por problemas respiratórios ou outras causas. É como se nada disso existisse, ou importasse, ou pudesse merecer algum tipo de consideração. Na cabeça dos que governam os jogos de futebol — e em qualquer outra atividade deste mundo na qual uma autoridade possa mandar — hoje em dia só se morre de covid. O resto é o resto. Não faz o menor sentido — mas as sociedades, cada vez mais, estão se acostumando a engolir decisões sem nexo por parte dos que mandam. É covid? Então vale tudo, aceita-se tudo e, mais ainda, se obedece a tudo.
Quem obrigará os brasileiros a tomar uma vacina genérica quando a Pfizer tem a sua?
É assim que muita gente está se acostumando a aceitar comportamentos irracionais, alguns já na fronteira da histeria, que se multiplicam na vida cotidiana. Dias atrás uma médica, de avental branco e tudo, foi vista no elevador de um edifício de consultórios de São Paulo apertando o botão do elevador com o cotovelo.
Rapazes e moças de 25 anos de idade andam de bicicleta, ao ar livre e debaixo do sol do meio-dia, com máscaras último tipo; já se viu gente que, ainda por cima, usa viseira de plástico. Bares e restaurantes (mais um mundo de outros lugares) continuam tirando a temperatura dos clientes que chegam — como se fosse a coisa mais comum desta vida alguém sair de casa para tomar um chopinho com 40 graus de febre. Chegar perto de um outro ser humano é considerado um grave risco. Há pessoas que chamam a si próprias de “vetor” — e por aí vamos.
O governador Doria, com o apoio de seu companheiro de partido Aécio Neves — hoje refugiado na Câmara dos Deputados para escapar de acusações penais por crime de extorsão — quer socar na veia de todo mundo uma substância de origem chinesa que ele (além do laboratório “privado” da China com o qual o governo paulista se associou) define como uma vacina contra o coronavírus — a “vachina”. (Aécio e outros deputados propõem, inclusive, punições legais para quem não se vacinar — com essa ou com alguma outra vacina, que eles não dizem qual será.) Nenhum país sério do mundo aceitou até agora esse negócio; no Brasil, inclusive, a Anvisa chegou a suspender (e depois permitiu de novo), os testes que vinham sendo feitos com a vacina chinesa, ou “do Butantã”. Qual é o nexo?
Isso ainda não é o pior. A Pfizer, indústria farmacêutica americana fundada em 1849, presente em 150 países e com indiscutível reputação científica em todo o mundo, acabou de anunciar que obteve êxito na sua vacina — que, obviamente, é muito mais respeitada do que a tentativa de um laboratório chinês que nunca foi capaz de produzir com sucesso um único comprimido de Melhoral em toda a sua existência. E agora: vai continuar a guerra para obrigar os brasileiros, por lei, a tomarem a “vachina” do governador Doria, ou qualquer vacina genérica, quando a Pfizer tem a sua — e outros laboratórios que desfrutam de imenso prestígio internacional vão pelo mesmo caminho?
O que vai se fazer com os milhões de doses da droga chinesa a ser fabricada no Instituto Butantã, em São Paulo? Você vai pagar cada centavo disso tudo, é claro — e se, no fim das contas, a vacina Doria-China não rolar?
Eis aí, em toda a sua pureza, mais um absurdo dessa covid-19 — como a decisão, tomada pelos gestores da cidade de Los Angeles, de proibir que as pessoas cantem em suas próprias casas na próxima festa de réveillon. (Além do mais, só podem comemorar a passagem do ano durante 2 horas; depois disso, cama.) Aqui, em relação à vacina, temos uma situação de estupidez perfeita. A autoridade pública diz ao cidadão:
“Você será obrigado a tomar a vacina”.
O cidadão pergunta: “Qual vacina?”
A autoridade responde: “Não sei.”
O Brasil tido como “pensante”, esse Brasil que sabe das coisas melhor do que o Brasil que você vê em sua volta, acha que não há nada demais com isso.
E daí que o sujeito tenha de tomar uma vacina que não existe? Qual é o problema?
Está querendo que as pessoas morram? Está sendo “negacionista”? Votou no Trump?
O debate, em suma, tornou-se não-compreensível dentro das categorias normais da lógica. Esse fenômeno acontece, sem dúvida, na sequência de uma crescente passividade de grande parte da população diante da postura cada vez menos racional, e cada vez mais autoritária, de quem nomeia a si próprio patrulheiro do bem comum e do movimento mundial contra a epidemia.
A apatia com que se aceita os fatos descritos acima tem sido incentivada de maneira agressiva pelo complexo formado pela mídia, a politicalha, as classes intelectuais e o resto do sopão liberal-democrático-equilibrado-centrista-progressista-europeu-civilizado que sempre sabe o que é melhor para você — muito mais do que você próprio sabe. É tudo o que a vasta multidão de gente que se espalha por aí, com a alma de pequeno ditador, de inspetor de quarteirão e de guarda-da-esquina pediu a Deus e aos Doze Apóstolos.
Como escreve Theodore Dalrymple, articulista da revista inglesa Spiked e colaborador da OESTE, há pelo mundo afora cada vez mais gente obedecendo às ordens de pessoas que não foram eleitas para nada. Há cada vez mais pessoas que nunca receberam um único voto na vida, e não têm mandato nenhum, dizendo o que o cidadão deve ou não deve fazer, o que pode e o que não pode. Estão nas burocracias, nos organismos internacionais, na mídia, nas universidades, nas ONGs e nas fábricas de especialistas-técnicos-cientistas que se multiplicam por aí, e que querem decidir sobre tudo, do aquecimento global à definição do que é um queijo da Serra da Estrela. Estão sempre vigiando você, com um “protocolo” na mão. São, hoje, a pior ameaça à democracia que existe no mundo. Contam, sem dúvida, com o apoio de boa parte do público — são pessoas que querem obedecer, esperam o tempo todo que alguma autoridade (bem ou mal intencionada) lhes diga o que fazer, e se sentem mais confortáveis sempre que topam com uma nova regra para cumprir.
É curioso. Causa grande alarme nas classes intelectuais, nas elites de todas as naturezas e na imprensa em geral o “papel inferior” em que, na sua opinião, a política tradicional e as “instituições” se viram atiradas pelo “populismo” desses últimos tempos. Os políticos eleitos, dizem eles todos, podem ser muito ruins, mas receberam votos para exercer os seus cargos; é melhor conviver com eles do que com a “democracia direta” e “sem intermediários” que vem da multidão irracional e que é defendida pelos “populistas”. Pode ser. Mas o populismo, pelo menos, tem algo a ver com a ideia de povo — é algo popular, digamos assim. E os burocratas que fecham escolas, dizem a que horas você pode voltar para casa e têm direito de vida ou morte sobre o seu emprego — foram eleitos por quem?
Leia também o artigo de Brendan O’Neill nesta edição, “A verdadeira resistência”
Revista Oeste - Transcrito em 20 novembro 2020