Por que ser contra algo que pode tornar a votação mais segura?
Há anos, partidos de diferentes matizes sentem necessidade de aperfeiçoar o sistema eleitoral com um dispositivo que não deixe dúvidas sobre sua lisura: a impressão do comprovante do voto, que nada tem a ver com a volta das cédulas de papel, anteriores às urnas eletrônicas.
Três projetos de lei sobre o tema chegaram a ser aprovados no Congresso Nacional em 2002, 2009 e 2015 — na terceira vez, a medida teve o apoio de siglas como PSDB, MDB, PCdoB, Psol e PDT, entre outras. No entanto, em todos os casos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se manifestou contra a implantação e o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade dos textos de 2009 e 2015. Por recomendação do TSE, o de 2002 foi derrubado pelo Congresso.
Atualmente, tramita na Câmara a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/19, de autoria da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF). O projeto seria votado na quinta-feira 15, mas, por falta de consenso entre os deputados, a comissão especial responsável adiou a apreciação da matéria para agosto. Contrário à sua aprovação, o TSE argumenta que a medida é cara demais, custa cerca de R$ 2 bilhões — na mesma quinta, os pagadores de impostos ficaram sabendo que a Comissão Mista de Orçamento aprovou o aumento do Fundo Eleitoral de R$ 2 bilhões para R$ 5,7 bilhões. Até agora, o TSE não se manifestou sobre o caso.
A PEC, contudo, não estabelece se todas as urnas poderão ser auditadas em uma possível contestação — o que demoraria muito — ou se apenas uma porcentagem delas. Outro ponto a ser esclarecido é o local de armazenamento das urnas com os comprovantes de votação e por quanto tempo eles ficariam guardados.
Em linhas gerais, ao criar um meio adicional de segurança às urnas, a PEC se propõe a dar mais transparência ao processo eleitoral. Num primeiro momento, vários partidos simpatizaram com a medida, entre eles, o PDT e o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Com o avanço da PEC no Congresso Nacional, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, iniciou uma cruzada contra a medida afirmando que o processo eleitoral eletrônico é 100% seguro e transparente. “Já passou o tempo de golpes, quarteladas, quebras da legalidade constitucional”, declarou Barroso. “Ganhou, leva. Perdeu, vai embora. Não há lugar no Brasil para a não aceitação dos resultados legítimos das urnas eletrônicas.” Os ministros do STF Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Antônio Dias Toffoli engrossaram a ofensiva e costuraram um acordo com 11 partidos para barrar o que insistem em chamar de “voto impresso”.
A gota d’água para a polarização política do tema aconteceu quando o presidente Jair Bolsonaro afirmou que, caso não haja o voto impresso verificável, “corremos o risco de não ter eleições no ano que vem”. Ou seja, embora os dois lados digam que estão lutando por eleições limpas, nenhum deles joga limpo e, um ano e meio antes da eleição, criou-se um ambiente de desconfiança. Qualquer que seja o resultado, o lado perdedor já anunciou que acusará fraude.
Um raio X das urnasO programa (software) que vai nas urnas eletrônicas é desenvolvido por seis técnicos da Seção de Voto Informatizado (Sevin), vinculada à Secretaria de Tecnologia da Informação (STI) do TSE, durante os seis meses que antecedem o primeiro turno das eleições. Nesse período, partidos políticos, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Ministério Público Federal podem acompanhar as fases de desenvolvimento dos sistemas e, depois, certificam se os programas que serão usados no processo eleitoral não foram violados. O programa é enviado por uma rede privativa de internet aos cartórios. [a classificação privativa em internet é sempre relativa - que o digam os administradores do oleoduto que no inicio de junho, foi paralisado por hackers que invadiram o sistema = até então classificado como seguro, privativo.] Lá, são baixados em flashcards (espécie de pen drives ou disquetes) que vão carregar as urnas para as eleições.
Amílcar Brunazo, engenheiro especialista em segurança de dados e voto eletrônico, afirma que a inviolabilidade das urnas eleitorais é questionável. “A equipe de Diego Aranha [professor associado de Segurança de Sistemas na Universidade de Aarhus, na Dinamarca] mostrou, de dentro do TSE, ser possível inserir no flashcard um código adulterado, que não foi feito pelo tribunal, e colocá-lo na urna eletrônica”, disse Brunazo, ao observar que os brasileiros acabam tendo de confiar no servidor público que vai inserir o dispositivo na máquina. “Muitas vezes é um profissional terceirizado. O processo eleitoral brasileiro depende da integridade de todos os funcionários envolvidos (cerca de 5 mil pessoas).”
Em resumo, urnas eletrônicas de segunda geração possibilitam o voto impresso. Nas urnas de terceira geração, esses votos são impressos com um registro digital, que certifica a autenticidade daquele voto — uma espécie de código de barras que pode ser verificado pelo TSE, pela OAB, pelos partidos políticos e pelo MPF.Modelo de urna de segunda geração - Foto: Divulgação/Agência BrasilUrna de terceira geração utilizada na Argentina | Foto: Divulgação
O TSE garante que as atuais urnas eletrônicas brasileiras são confiáveis e não podem ser fraudadas. De acordo com a corte, uma das barreiras de segurança dos equipamentos é o chamado Registro Digital do Voto (RDV), que armazena em ordem aleatória e criptografada o voto de cada eleitor, com a finalidade de preservar o sigilo da votação. Os estudos do professor Diego Aranha, entretanto, mostraram que o RDV também se baseia no software e, portanto, pode ser adulterado.
Aranha participou de dois testes públicos de segurança do TSE, quando equipes de técnicos são convidadas a explorar o sistema e tentar encontrar vulnerabilidades. Em 2012, Aranha conseguiu acessar os registros digitais dos votos: embora os RDVs estivessem embaralhados, ele os colocou em ordem e, assim, quebrou o sigilo do voto — foi possível saber como votou o primeiro eleitor, o segundo e assim sucessivamente.
Franklin Melo, especialista em Tecnologia da Informação, afirma que pode haver brechas em qualquer canal de rede de internet, até mesmo na privativa do TSE. Crítico do atual modelo de votação do Brasil, ele diz que nenhum sistema digital é 100% seguro. “Qualquer software é passível de fraude”, constatou, ao dizer que programas de computadores são desenvolvidos por seres humanos, que cometem erros. “Nem a Nasa tampouco o Pentágono são 100% seguros”, acrescentou, ao dizer que não entende por que há tanta resistência no Brasil a adotar mais uma camada de proteção em seu sistema eleitoral. Segundo Melo, qualquer sistema tem de estar em constante aperfeiçoamento, como, por exemplo, ocorre com celulares e aplicativos, entre outros. “Atualizações garantem que eventuais vulnerabilidades possam ser sanadas”, diz, ao elogiar a impressão do comprovante do voto como meio de obter maior transparência.
Infográfico revisado pelos especialistas em tecnologia da informação Amílcar Brunazo e Carlos Rocha - Infográfico: Luiz Iria, Naomi Akimoto Iria e Cristyan Costa
A Justiça Eleitoral organiza, fiscaliza e realiza as eleições, regula o processo eleitoral, examina as contas dos partidos e dos candidatos, controla o cumprimento da legislação e julga os processos relacionados com as eleições. Em síntese, ela é a mandachuva do sistema. Além disso, ministros do STF se revezam em cargos de decisão dentro do TSE, como a presidência da corte.
Por que ser contra algo que pode tornar a votação mais segura?
Carlos Rocha, engenheiro formado no Instituto Tecnológico de Aeronáutica e CEO da Samurai Digital Transformation, defende a descentralização do TSE. “Não é crível que a autoridade eleitoral cuide de tudo”, afirmou. Rocha liderou o desenvolvimento e a fabricação da urna eletrônica nos anos 1990 e acredita que seja necessário o aprimoramento do processo eleitoral. “A democracia brasileira não pode continuar a depender de um pequeno grupo de técnicos do TSE, que têm o controle absoluto sobre o sistema eletrônico de votação, de todos os códigos e chaves de criptografia”, afirmou.
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“Quem realiza eleições não pode, também, desenvolver software, certificar equipamentos e programas, auditar os resultados das eleições e julgar eventuais desvios”, disse Rocha. Apoiador do voto auditável, ele destaca a necessidade de materializar cada voto em um documento eletrônico certificado pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, a ICP-Brasil, de modo a conceder validade legal. “O atual RDV [Registro Digital do Voto] reúne todos os votos em um único arquivo e não protege os votos contra apagamento ou alterações, no caso de quebra de segurança da urna”, observou Carlos.
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