DF e Entorno são palcos da atuação de grupos organizados do
Brasil. O assassinato de Randerson Carmo, 24 anos, em 2 de julho, expôs a
brutalidade de um "tribunal do crime" na capital do país. Desafio da
polícia é conter a expansão dessas células
Um conflito bárbaro que dura quase 20 anos no país se
expandiu para o Distrito Federal:
a guerra entre as duas maiores facções
criminosas do Brasil, o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro;
e o
Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, leva violência a áreas
do DF e do Entorno.
A disputa por pontos estratégicos para comercializar
drogas deixa um rastro de morte em diversos estados brasileiros e,
recentemente, Brasília registrou o assassinato de Randerson Silva Carmo,
24 anos, integrante do CV, decapitado após ser submetido a um “tribunal do crime”,
que durou mais de 10 horas, em Ceilândia, transmitido on-line.
Para
especialistas, a ação de faccionados na capital tem sido mais discreta
do que em outras unidades da Federação, mas o fato de lideranças do
grupo terem sido transferidas para a Penitenciária Federal de Brasília
indica o incremento das ações do grupo. Esta semana, um integrante do
PCC pertencente à célula do DF, que tinha como função gerenciar as
atividades da facção, foi preso em Piracicaba (SP), na companhia de um suspeito de participar do ataque a bancos em Araçatuba
Dos quatro envolvidos no homicídio de Randerson, todos
membros do PCC, dois foram presos pela Polícia Civil do Estado de Goiás
(PCGO), um morreu em confronto com a Polícia Militar, e o outro está
foragido. O Correio esteve em frente à casa onde o
jovem foi assassinado e observou intensa movimentação de homens entrando
e saindo da residência. Vizinhos relataram à reportagem que o imóvel
funciona como um ponto de tráfico de drogas, mesmo após o crime.
Delegado do Grupo de Investigação de Homicídio (GIH) de
Águas Lindas (GO), Vinícius Máximo está à frente do caso e afirma que a
polícia tem trabalhado para impedir a instalação e a expansão de
facções em regiões do Entorno. “Muitas das ordens dos faccionados, seja
para execução, seja para tráfico, saem direto do presídio. Então, nosso
monitoramento se concentra muito nas cadeias, para inibir o problema na
raiz. Não sabemos ao certo quantos membros de facção estão em Águas
Lindas, mas acreditamos que sejam muitos. Eles estão em toda a parte.
Nesse caso, em específico, os autores ficavam no DF”, pontuou.
Execução Fim da tarde de
1º de julho. Por volta das 17h,
Randerson, conhecido como Chico Nóia, saiu de casa, em Águas Lindas de
Goiás, sem dizer para onde ia. Aparentava estar nervoso, segundo relatou
a amiga que morava com ele, em depoimento ao qual o Correio
teve acesso com exclusividade. O encontro parecia estar marcado.
Próximo a uma padaria da região, ele entrou em um gol branco ocupado por
quatro homens, Fernando Gomes de Morais, o Esquerdinha; José Francisco
Feitosa Filho, o Foguinho; Antônio Francisco Batista, o Pé na Porta; e
um identificado apenas como Zóio. Mal sabia que passaria por uma longa
sessão de julgamento, sob acusação de agir para tomar o ponto de tráfico
comandado pelo PCC: a Praça Santa Lúcia, em Águas Lindas.
Foram 26km até chegar a uma casa alugada, na Quadra 9
do Setor Industrial de Ceilândia. No interrogatório, à polícia, Fernando
contou que, além da rivalidade entre os membros, as duas facções
estariam disputando o ponto de tráfico no município goiano. A sessão
começou por volta das 20h30. Fernando deu detalhes aos policiais de como
ocorreu o tribunal. Segundo ele, cerca de 100 membros do PCC, incluindo
um dos líderes, participaram do julgamento. Após mais de 10 horas, a
maioria votou pela execução.
Dada a ordem do assassinato, os líderes da facção
ordenaram aos “encarregados” que decapitassem Randerson e jogassem a
cabeça na Praça Santa Lúcia: seria uma forma de “mostrar o poder”. A
vítima foi espancada e esfaqueada com golpes de tesoura.
O passo a passo
do crime foi filmado, como determina uma das leis da cúpula, e o vídeo
circulou nas redes sociais.
Investigação A cabeça de Randerson foi encontrada na praça, ao lado
de um saco plástico preto. Uma testemunha relatou à polícia que recebeu a
notícia em um grupo de WhatsApp de moradores e foi até o local. Na
volta para casa, disse ter visto Fernando em um bar debochando da
situação, dizendo que precisaria sair do bairro o quanto antes, pois
tinha assassinado Chico Nóia.
A mãe de Randerson mora no Pará e recebeu a notícia da
morte do filho no mesmo dia. A mulher veio para Brasília e, em
depoimento, contou que o último contato que fez com o filho foi em 1º de
julho, quando ele ligou, disse que estava trabalhando e que pretendia
morar sozinho. Narrou que o filho nunca chegou a comentar se era
ameaçado ou se era integrante de facção.
Em uma intensa investigação, policiais civis do GIH
deram início às diligências e, em 7 de julho, a equipe recebeu a
informação de que um corpo decapitado estava em um matagal próximo à
Quadra 9 do Setor Industrial de Ceilândia. A perícia constatou que se tratava de Randerson. “A partir daí, iniciamos as apurações para capturar
os envolvidos”, disse o delegado Vinícius Máximo.
“Fizemos duas perícias na casa onde ocorreu o crime.
Encontramos lençóis sujos de sangue e um buraco na parede onde
supostamente eles tinham escondido a tesoura usada no crime”, completou o
delegado-chefe da 24ª DP (Setor O), Raphael Seixas. Um dia depois de os
policiais encontrarem o corpo, um dos suspeitos do crime, Antônio
Francisco Batista, foi morto após atirar contra policiais militares de
Goiás.
A PCGO prendeu Fernando e José poucos dias depois do
crime. Ambos foram indiciados por homicídio e ocultação de cadáver e
cumprem prisão preventiva na cadeia de Águas Lindas. Eles ficarão no
Complexo Penitenciário da Papuda, uma vez que o assassinato aconteceu no
DF. “Um dos envolvidos está foragido. Estamos intensificando as
investigações para identificá-lo e capturá-lo”, reforçou o delegado
Vinícius Máximo.
Segurança No Complexo Penitenciário da Papuda,
os presos membros de facção não são separados por cela ou pátio. Isso porque, na avaliação
da Secretaria de Administração Penitenciária (Seape-DF), é um meio de
evitar o fortalecimento das organizações na cadeia.
No DF, a Departamento de Combate à Corrupção e ao Crime
Organizado (Decor) é a unidade especializada da PCDF na desarticulação
de facções criminosas na capital. Em maio deste ano, os investigadores
capturaram o chefe da maior organização do Distrito Federal, o Comboio
do Cão (CDC), Willian Peres Rodrigues, de 36 anos, que estava foragido
desde 2017. Foram anos de investigação até chegar ao paradeiro do homem.
O trabalho de monitoramento, no entanto, é sigiloso, para não
atrapalhar as diligências.
Atitude dos governos
“Temos observado a expansão de
facções prisionais por todo o país, mas também o surgimento de novos
grupos, os quais têm se valido claramente da estrutura de Estado.
Recentemente, a Polícia Civil do DF e o Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios desarticularam mais uma célula do PCC na capital
com a deflagração da Operação Tríade. A PMDF também prendeu um membro
que estava foragido no DF. A PCGO teve êxito na prisão de um membro do
PCC em Brazlândia. Ou seja, temos observado ações muito pontuais das
forças de segurança pública para impedir que facções se instalem no DF, a
partir de investigações, sem, contudo, conseguir resolver efetivamente o
problema, pois o PCC tem se organizado como uma hidra: corta uma cabeça
e nasce outra. O PCC internacionalizou um modelo de facção cuja forma
de autoadministração entre membros e lideranças é complexa e muito bem
articulada e, o pior, a partir da infraestrutura oferecida pelo Estado.
Enquanto o Estado não atacar a política de drogas, pensar na questão da
seletividade penal e nos filtros da entrada do sistema prisional, no
problema do encarceramento em massa, na questão dos presos provisórios e
não priorização às penas e às medidas alternativas, dificilmente a
economia do crime e as facções perderão força.”
Welliton Caixeta Maciel, professor de
antropologia do direito e pesquisador do Grupo Candango de Criminologia
(GCCrim), da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Filiação Natural d
o Pará, Randerson filiou-se ao
CV em 2016 dentro da cadeia de Águas Lindas, onde cumpriu pena pelo
assassinato de Jeferson Faria Nascimento, 17. Cerca de um mês após
passar para o regime semiaberto, ele foi morto.
Preso o "geral do estado"
Mais conhecido como Luiz Adriano, o homem preso pelos investigadores da Decor da PCDF, na terça-feira,
pertence à célula do PCC em Brasília e ocupava a função de “geral do
estado” dentro da facção, segundo as investigações. O criminoso estava
escondido em uma região de chácaras nos arredores da cidade de
Piracicaba (SP), onde, de lá, geria os negócios do PCC na capital do
país. As ações de Luiz Adriano foram investigadas no âmbito da Operação
Tríade, deflagrada em junho deste ano pela Polícia Civil, como forma de
conter a tentativa de estabelecimento do PCC no DF. Em decorrência dessa
investigação contra o criminoso, constava mandado de prisão preventiva
expedido pela Justiça. No momento da prisão, os policiais detiveram
outros dois homens, sendo que um deles estava com um ferimento em um dos
braços, decorrente de troca de tiros com a polícia durante o
mega-assalto em Araçatuba, que deixou três mortos e cinco feridos.