Carlos Andreazza
O presidente do Supremo é um mestre em jogar para a galera - Ele lançou sobre um servidor o peso de decisão que só o presidente do Supremo poderia tomar
Luiz Fux — para se lavar de um aval que obviamente dera — arranjou-se cuspindo ao mar um colaborador de terceiro escalão. Aquele exercício covarde de onipotência típico dos que se sabem inalcançáveis. O presidente do Supremo Tribunal Federal é um poder inteiro e, no caso do atual, um mestre em jogar para a galera. (Não tardará, aliás, até que abra enquetes em rede social para que seus seguidores determinem como deve votar.) Outra coisa, porém, será cultivar a imagem de homem justo e combatente de regalias afogando um subordinado em injustiça; um desmando autoritário reativo para não assumir o desmando patrimonialista original.
Sim. Refiro-me ao caso — um escândalo — em que Fux, pressionado pela imprensa que o adula, decidiu, fingindo-se de chocado, exonerar o secretário de saúde do STF.
(Sendo também o caso de perguntar por que o tribunal precisaria de uma tal secretaria.)
O doutor Marco Polo Dias Freitas levou a culpa. Pagou pelo ato por meio do qual a Corte constitucional brasileira — vergonhosamente — demandara à Fiocruz uma reserva de 7 mil doses de vacina contra a peste para seus togados e funcionários. Pego em flagrante, Fux — em gesto de rara desonra — lançou sobre um servidor o peso de decisão que só o presidente do Supremo poderia tomar. Um conjunto de arbitrariedades a não ser esquecido. (E que só será surpresa para quem admite o modo como o ministro maneja a Constituição.)
Freitas foi elegante, impessoal, ao sair, talvez com a intenção de preservar a instituição a que se dedicava havia década; mas deixou claríssimo o que se passara: “Respeito rigorosamente a hierarquia administrativa do Supremo Tribunal Federal. Nesses onze anos no STF, nunca realizei nenhum ato administrativo sem a ciência e a anuência dos meus superiores hierárquicos”.
Elegante. Eu também serei. (Quem sabe, assim, este artigo escape da censura no clipping do tribunal?) E serei igualmente claro. O ofício de requisição da reserva de doses foi assinado, em 30 de novembro, pelo diretor-geral do Supremo, Edmundo Veras dos Santos Filho; que, no entanto, manteve o cargo. Fux justificou a demissão do mais fraco afirmando que o pedido fora feito sem o seu consentimento. Não é verdade.
O presidente do Supremo faltou com a verdade; o que se prova facilmente, sendo o próprio Fux a se desmentir. [não podemos esquecer que o oficio foi assinado pelo diretor-geral do Supremo, Edmundo Veras, superior hierárquico do doutor Marco Polo - e os mais elementares fundamentos hierárquicos, rudimentares princípios da hierarquia, estabelecem que ao ter seu pedido acatado pelo superior hierárquico, o subalterno está respeitando a hierarquia.
Se alguém descumpriu a hierarquia foi o diretor-geral do Supremo = se impondo sua exoneração - exceto se, o ministro Fux tinha conhecimento do oficio (o mais provável, devido as implicações políticas do pedido desaconselharem o senhor Veras de até pensar no assunto, sem o aval do presidente do STF.]
Freitas foi exonerado em 27 de dezembro. No dia seguinte, o presidente do STF pôs em campo uma blitz para, em suma, apregoar que não sabia e que não admitia; versão que rui diante da entrevista veiculada cinco dias antes, em 23 de dezembro, pela TV Justiça, em que se demonstra não apenas informado sobre o pedido, mas favorável à demanda. Fala Fux: — Nós, por exemplo, fizemos um pedido, de toda forma delicada, ética, um pedido, dentro das possibilidades, que, quando todas as prioridades forem cumpridas, de que também os tribunais superiores — que precisam trabalhar em prol da Covid — tenham meios para trabalhar. E, para isso, precisa vacinar. Não adianta vacinar os ministros e não vacinar os servidores. A difusão da doença seria exatamente a mesma. [um aspecto não destacado: os servidores se tornaram beneficiários do pedido para não contagiarem os supremos ministros. Fosse a covid-19 apenas letal, não contagiosa, os ministros seriam vacinados e os servidores aguardariam.]
Que tal? Que tal essa ética? Mesmo o português truncado de Fux — que decerto gostaria de trabalhar contra a Covid, e não em prol do vírus — não é capaz de deixar dúvidas. Nós é nós. Né? Nós somos. O “nós fizemos um pedido” o inclui. Nós pedimos. Certo? Nós só são os outros — quando o bicho pega, e o bafo da sociedade esquenta o cangote — na ética fuxiana do bode expiatório. E não deixa de ser requisição de tratamento prioritário, uma que se queira postar à fila logo após as prioridades já consagradas. Fim da fila de prioridades ainda prioridade será. Não há delicadeza nisso.
Fux não apenas tinha ciência do pedido como — sob visão estratégico-corporativa — avalizou-o. E diga-se que, fosse verdadeiro que a demanda tivesse sido feita sem sua chancela, teríamos apenas mais uma exibição de incompetência; e ele precisaria demitir o diretor-geral. Mas não foi incompetência. Não desta vez. Foi um movimento natural, consciente, relaxado, de quem se sabe mesmo privilegiado; de alguém cuja trajetória educou para o hábito do privilégio. Foi desde esse lugar que o presidente do STF ceifou o doutor Freitas.
Fux, contudo, ao explicar a demissão covarde do subordinado, disse: “Sempre fui contra privilégios”. De novo, não é verdade. Temos memória. Ou não terá sido ele — agora todo enérgico contra decisões monocráticas — o ministro que ficou, atenção, quatro anos sentado sobre liminar, canetada classista de próprio punho, que garantiria auxílio-moradia a juízes e procuradores, uma conta bilionária? [vale a pena conferir a íntegra da matéria, da qual destacamos:
A lentidão na análise da liminar foi motivada,- dizem as más, ou bem informadas línguas - pelo fato da desembargadora Mariana Fux, filha do ministro Fux, trabalhando no Rio, receber auxilio moradia, mesmo sendo proprietária de dois apartamento no Leblon.]
O privilegiado Luiz Fux é o privilégio. Pode tudo. É também um — mais um — ministro da corte constitucional brasileira em quem não se deve confiar.
Carlos Andreazza, jornalista - Opinião - O Globo
Às vezes, no entanto, o próprio Supremo parece não compreender adequadamente seu papel constitucional, invadindo as atribuições do Congresso. Isso se expressa, por exemplo, no recebimento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) manifestamente ineptas, como a que questiona a Lei das Estatais, como já criticamos neste espaço (ver o editorial Cabe ao STF rejeitar a judicialização da política, dia 20/2/2023).
A Adin 5090 questiona um sistema vigente desde a Lei 8.177/1991, que definiu regras para a desindexação da economia. O tema foi levado diversas vezes ao Judiciário. Em 2014, o STF rejeitou apreciar a matéria. Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que não competia ao Judiciário substituir a TR por outro índice de correção monetária. Um mínimo de estabilidade na jurisprudência é respeito não apenas à segurança jurídica, mas ao próprio Judiciário.
Há motivos razoáveis para criticar a sistemática atual e postular mudanças no modo de correção do FGTS. O ponto é: esse debate deve ser feito no Congresso, e não no STF. A escolha do índice a ser aplicado ao saldo das contas é uma decisão política, com consequências sobre diversos temas políticos, sociais e econômicos. Por exemplo, mudar a forma de correção do FGTS afeta o financiamento imobiliário para a população de baixa renda.
No momento em que o STF toma para si esse tipo de decisão, a Corte passa, na prática, a gerir uma série de questões que não lhe competem, reduzindo a responsabilidade do Congresso sobre temas centrais da vida nacional. Basta ver que, nos dias de hoje, boa parte da equação fiscal, a afetar inúmeras políticas públicas, depende não dos parlamentares eleitos, mas das escolhas que serão feitas pelos ministros do Supremo.