Vivemos tempos sem beijos nem abraços, entre amigos, familiares e até
mesmo os amantes. A vida virou uma roleta-russa, todo dia chega uma
notícia triste de alguém que morreu e, em maior número, para nossa
alegria, das pessoas queridas que sobreviveram à Covid-19. O isolamento
social está sendo quebrado à medida em que a taxa de transmissão da
doença diminui e as pessoas ficam mais confiantes de que podem
desenvolver certas atividades essenciais, com os devidos cuidados. Todos
torcem pela vacina eficaz, chinesa, russa, inglesa ou norte-americana, e
se arriscam um pouco mais.
Tempos darwinistas sob todos os pontos de vista: sanitário,
econômico, social. A sobrevivência humana não está ameaçada, muitos
tiram a doença de letra, como se fosse uma “gripezinha”, mas a
capacidade de adaptação às contingências do momento é mais importante do
que a resistência física de cada um para sobreviver à pandemia. Para
isso servem a ciência e a consciência humana. Como diz o ditado, cautela
e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Depois de tanto tempo, as
comorbidades começam a se tornar um problema muito grave, porque as
pessoas deixaram de ir ao médico e ao dentista, reduziram as atividades
físicas, alimentam-se por ansiedade, adiaram ou interromperam
tratamentos, subestimam pequenos sintomas, enfim, não dão importância
aos sinais que o corpo nos envia. E têm os nervos à flor da pele, o que
agrava conflitos familiares e problemas psicomentais.
Mas, há muita esperança e fé. Amanhã é dia das crianças, os clubes
estão abrindo para recebê-las em relativa segurança, apesar da pandemia.
Os templos também promovem cultos, recebendo as famílias com maior ou
menor distanciamento social, dependendo da fé na ciência de cada padre
ou pastor. Criança é sinônimo de futuro. As escolas, porém, estarão
fechadas. Desperdiçam a oportunidade de virar o jogo, jogar todos para
cima. Por um desses mistérios da criação, desculpem-me o trocadilho,
crianças têm menos vulnerabilidade ao coronavírus, quando não têm
comorbidades, é claro; porém, podem ser agentes transmissores da doença,
porque geralmente são assintomáticas quando contaminadas, dizem os
especialistas. Por causa disso, os adultos estão com inconfessável medo
das crianças, isso é um problema.
— Azedo, você não vai escrever sobre as crianças?
A pergunta foi feita por um amigo querido, o pediatra carioca Ricardo
Chavez, parceiro de muitos blocos e passeatas, preocupado com o fato
delas não estarem frequentando a escola. Entre os primeiros a defender o
isolamento social, avalia que já passou da hora de as crianças terem
uma vida quase normal, o confinamento doméstico prejudica o
desenvolvimento infantil, ainda mais com o liberou geral do celular e
outros equipamentos eletrônicos. Mandou-me um artigo excelente sobre o
tema, da colega Ruth de Aquino, de quem foi um dos interlocutores, que
recomendo. Repassei o texto e a pergunta para outro amigo querido,
Luciano Rezende, prefeito de Vitória, que conclui o segundo mandato com
reconhecido êxito administrativo e zero escândalos em oito anos. Médico
também, respondeu-me dizendo a mesma coisa. Seu problema é convencer
diretores de escola, professores e pais de alunos, na rede pública.
Pacto perverso
De memória, porque emprestei o livro e não me devolveram ainda, lembro
de certa passagem de A quarta revolução (Portfólio/Penguin), de John
Micklethwait e Adrian Wooldridge, sobre a desilusão da sociedade com os
governos. O Ocidente está ficando para trás. Não se trata da chamada
indústria 4.0, como o título induz, mas da necessidade de uma nova
revolução política para reinventar o Estado. Vivemos uma corrida em
busca de eficiência e eficácia, não apenas nas inovações tecnológicas.
Estão em jogo os valores políticos que triunfarão no século XXI. Vem daí
a tensão no mundo entre forças reacionárias e democráticas.
Quando o livro fala dos lobbies corporativos, cita dois exemplos da
Califórnia. O dos agentes penitenciários, focado na luta contra a
violência e a criminalidade, que conseguiu endurecer a legislação e
multiplicar o número de presídios e a população carcerária, sem reduzir a
violência, é claro. E o dos professores, que têm muito mais poder de
pressão sobre os políticos, porque conseguem mobilizar os pais de
alunos. Pesquisando, vi que em abril do ano passado, por exemplo, pais
de alunos de São Francisco promoveram uma campanha para arrecadar fundos
para uma professora, após descobrirem que ela, além de lutar contra um
câncer de mama, pagava seu próprio substituto na escola. O relato do
caso no San Francisco Chronicle gerou indignação em escala nacional,
chegando ao Senado. Ao jornal The Washington Post, Eric Heins,
presidente da Associação dos Professores da Califórnia, denunciou que o
sistema de financiamento da educação sobrecarrega os professores e não
os poupa, nem mesmo em momentos críticos, como períodos de doença grave.
Desde 1970, na Califórnia, o acordo coletivo dos professores garante
10 dias de folga para tratamento de saúde, que podem ser prorrogados por
mais 100 dias, mas são descontadas do salário as despesas com o
substituto, entre US$ 174 e US$ 240 a diária. Um educador infantil
recebe por mês, em média, US$ 4.931,67; um professor primário, US$
4.971,67; no ensino médio, US$ 5.138,33. Segundo a Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em relatório de
terça-feira passada, no ensino infantil brasileiro os professores
receberiam por mês o equivalente a US$ 2.063,75;
no primeiro grau do
ensino fundamental, US$ 2.083,75; e no segundo, US$ 2.089,33.
A alta do
dólar, com certeza, distorceu esses números. O piso do Fundeb é de R$
2.886,24, sendo que apenas 11 estados cumprem essa regra, segundo o
Dieese. No câmbio oficial, isso equivale a US$ 521,04. Por isso,
desconfio que as nossas escolas públicas já não estão fechadas por causa
da pandemia; estão sem aulas por causa dos salários e, em muitos casos,
das condições em que se encontram. Quem paga o pato são as crianças.
Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense