Vozes - Gazeta do Povo
Em
condições normais ninguém acreditaria no que está vendo ou, no mínimo,
as chamadas “forças vivas” da nação estariam em pé de guerra contra o
que se vê. Mas o Brasil não está em condições normais. Na verdade, há
muito tempo que não vive em condições tão anormais como as de hoje – e
as perspectivas são de anormalidade cada vez mais radical, diante da
passividade quase absoluta com que se aceita qualquer aberração de feira
livre medieval, como a Mulher-Gorila ou o Gato-Que-Fuma, desde que ela
venha de uma dessas “instituições” democráticas das quais se ouve falar
dia e noite.
O último feito desta marcha nacional da
insensatez é que o STF, acredite se quiser, exigiu que o governo lhe
mandasse, para exame e aprovação, o plano nacional de vacinação contra
Covid-19 que está em preparação. Mais: o governo aceitou a ordem, e
mandou para o Supremo a papelada que lhe foi exigida.
Para
completar o desvario, o ministro incumbido de anunciar o que o país tem
de fazer em questões de vacina anticovid deu um prazo de “24 horas”
para serem anunciadas as datas oficiais da vacinação – ordem 100% sem
pé, sem cabeça e sem cabimento, dado o fato elementar de que
simplesmente não existe até agora nenhuma vacina aprovada pela Anvisa,
como exige a lei para a aplicação de qualquer medicamento no território
nacional. [o mais cômico, ridículo, sem noção, ou legislar sobre a tabuada (como bem diz J.R. Guzzo) é que alguns dos que as proferem, prolatam, seja o que for, é que acreditam mesmo que possuem competência institucional e conhecimentos para emitirem tais absurdos;
grave é que são decisões que não se sustentam, mas quase sempre são cumpridas ou tentam cumprir - só que são tão sem noção, incabíveis, insustentáveis (do ponto de vista científico, jurídico, político, etc) que chegará um momento em que o destinatário de tal ordem, simplesmente dirá: NÃO VOU CUMPRIR.
E como fica? Especialmente se for impossível obrigar o 'desobediente' a cumprir?]
Onde já se viu um negócio desses? A única
pergunta que vale a pena fazer, no caso, é a seguinte:
qual é o grau de
conhecimento científico ou médico, por mínimo que seja, que os 11
ministros do STF têm para dar qualquer palpite sobre o assunto?
A única
resposta possível é: “nenhum”. Suas excelências não seriam capazes de
dizer de qual lado se deve colocar um esparadrapo; mas tornaram-se a
última palavra em matéria de medicina neste país.
Mas
e daí? É isso o “Estado de Direito” à brasileira, modelo 2020, uma
anomalia permanente em que o STF decide sobre vacina, nomeação do
diretor da Polícia Federal ou a fórmula química da goiabada – na
verdade, nossos magistrados “top de linha” tomaram para si a tarefa de
baixar decretos, sem apelação, sobre qualquer tema que faça parte da
atividade humana. É uma piada ou, mais exatamente, a negação da lógica.
Quanto
mais histérico o STF se torna nessa sua busca obcecada pela verdade
universal, mais as elites – políticas, intelectuais, sociais e de
quaisquer outras espécies – acham que não há nada de mais. Está na cara,
diante deste estado de anestesia geral, que as coisas vão continuar
exatamente do jeito que estão.
A progressiva descida
do Supremo rumo a esse abismo incentiva, é claro, todo o tipo de
demência legalóide. Uma das mais agressivas, ultimamente, foi a de um
senador de Minas Gerais que não apenas apresentou um projeto de lei, mas
teve esse projeto aprovado pelo Senado Federal, dando “72 horas” para o
governo aprovar uma vacina contra a Covid – a mesma linha do STF.
Ninguém
viu nada de errado com esse despropósito: a primeira lei do mundo,
possivelmente, que fixa prazos para a ciência chegar à conclusão
definitiva sobre alguma coisa. Os cientistas ainda não têm certezas
sobre o tema; por que o governo deveria ter?
A
comprovação objetiva do disparate ficou por conta do respeitado
Instituto Butantan, de São Paulo, que já começou a envasar a “vacina do
Doria” – o imunizante que o governador paulista comprou da China e que
vem sendo usado por ele para dar a si próprio o título de campeão
brasileiro e mundial da vacinação contra a Covid-19. Doria, até cinco
minutos atrás, falava em pedir que “a Justiça” mandasse o governo
autorizar imediatamente a aplicação da “vachina”, como a coisa está
sendo chamada.
Mas o próprio Butantan decidiu adiar a
entrega dos dados de seus testes à Anvisa, pois chegou à conclusão de
que os resultados não são os que deveriam estar sendo. E agora? Onde
foram parar a pressa e os prazos de “48” ou de “72 horas”? É
o que dá, em todos esses casos, assinar decretos, liminares ou qualquer
outro tipo de papel exigindo que a ciência se comporte no ritmo imposto
por ministros, senadores ou governadores de estado. É como legislar
sobre a tabuada. Não chega nem sequer a ser um erro – é apenas uma
estupidez.
J.R. Guzzo, jornalista - Gazeta do Povo - Vozes