Decisão caberá ao pleno do tribunal; é provável
que ministros não queiram submeter procurador-geral à humilhação, mas
os fundamentos estão dados, sim, e com sobras
O presidente Michel Temer entrou com um
pedido de suspeição de Rodrigo Janot, procurador-geral da República. A
decisão caberá ao Supremo. Para que isso não ocorresse, o próprio Janot
poderia dar-se por impedido, o que não vai acontecer. Nem Temer nem seu
advogado no caso, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, são ingênuos: sabem
que dificilmente o tribunal tomaria essa decisão. A questão aí não está
em ver declarada ou não a suspeição, mas em suscitar um debate sobre
método.
Antes que prossiga, um esclarecimento:
quem vai decidir? O pedido é apresentado a Edson Fachin, relator, que
tem o dever de ouvir o procurador-geral. A esta altura do campeonato,
não creio que Fachin se atrevesse a tomar uma decisão monocrática. Até
porque seria inútil. A defesa recorreria a um agravo regimental,
instrumento que força que os demais ministros se manifestem. Decisões
que dizem respeito aos chefes de Poderes têm de ser tomada pelo pleno.
Logo, hão de se manifestar os 11 ministros.
Ainda que possa haver razões — e há uma
penca! — para que Janot tenha declarada a suspeição, é pouco provável
que o STF o submeta a tamanha humilhação. Mas não tenho dúvida de que
haverá a ocasião, então, para um debate substantivo sobre o que está em
curso. Para ler a petição de Mariz, clique aqui. Quais são as alegações da defesa e o que se pode dizer a respeito delas?
Mariz sustenta que Janot é suspeito
(possibilidade prevista no Artigo 104 do Código de Processo Penal) com
base nos Incisos I e IV do Artigo 254 do mesmo código. Eles estabelecem
que um juiz deve se declarar suspeito se for amigo íntimo ou inimigo de
qualquer uma das partes e se a tiver aconselhado. O Artigo 258 estende
essas e outras restrições ao Ministério Público. Apela também ao Inciso
IV do Artigo 145 e ao Inciso I do Artigo 148 do Código de Processo
Civil, que faz as mesmas restrições.
E quais evidências aponta a defesa para declarar que Janot se fez um inimigo público de Temer? Vamos ver.
1 – Flechadas: a
petição lembra que Janot disse em palestra na Associação Brasileira de
Jornalismo Investigativo que, enquanto houver bambu, haverá fechas
contra Temer, metáfora reiterada em entrevista à Folha. Escreve a
defesa: “[Janot] Flechará, pois tem a caneta, se os alvos forem reais ou
meramente fruto de sua imaginação (…). Ao ser perguntado se havia prova
cabal contra Temer, [procurador] respondeu que ‘Ninguém vai passar
recibo. Esse tipo de prova é satânica, é quase impossível’. Confessou a
inexistência de prova.”
2 – Acusação aos pedaços:
Mariz aponta a exótica bipartição ou tripartição da denúncia, o que
levou o procurador a dizer, em reunião com representantes do PSOL, que
havia “forte materialidade” para denunciar Temer por “obstrução da
Justiça”. Vendo frustrados seus objetivos na Câmara, resolveu remeter o
caso para inquérito já aberto no STF e que trata de assunto diverso.
Afirma Mariz: “O alvo do seu arco é a pessoa do Presidente da República,
não importam os fatos.”
3 – Interferência na Polícia Federal:
a petição aponta, o que é fato, que foi Janot quem escolheu o delegado
Josélio Azevedo de Sousa para investigar o caso. O pedido foi feito a
Fachin, que concordou com o absurdo, violando competência do
delegado-geral da Polícia Federal.
4 – Impunidade incompreensível:
a defesa alega que os benefícios oferecidos a Joesley Batista e
associados são de tal sorte absurdos que se evidencia o ânimo de
perseguir o presidente. Está no texto: “Estranhou-se, ademais, que antes
de conceder a imunidade aos delatores, o Ministério Público não tenha
investigado o conteúdo das delações, se verdadeiro ou falso. Deu
validade plena, valor absoluto à suspeitíssima palavra dos delatores.
Erigiu a delação à condição de rainha das provas, esquecendo-se ser ela
meio de prova e não prova, sujeita à verificação e a existência de
outros elementos que a corroborem.”
5 – Protagonismo excessivo:
a petição nota que Janot tem concedido entrevistas e palestras Brasil e
mundo afora asseverando a culpa do presidente, observando que esta
“obstinada perseguição pela acusação não faz parte da missão
institucional do Ministério Público”. E cita um trecho do Regime
Jurídico que rege o MP. Lá se pode ler:
“O Promotor deve ter o zelo pela justiça e não pela
acusação. Caminha para séria deformação profissional e pessoal quando
não mais pensa assim, ou quando nem mesmo percebe que inverteu o sentido
do seu trabalho.”
Mariz destaca que Janot insiste em
afirmar que está na gravação o que, com efeito, não está lá: a anuência
de Temer com a compra do silêncio de Eduardo Cunha. Nesse caso, de fato,
estamos diante de um procedimento que chega a ser surreal. Parte da
imprensa insiste em afirmar que haveria tal passagem na gravação. E isso
simplesmente inexiste.
Mais: Janot insiste em dizer que só
ficou sabendo da gravação posteriormente, quando foi desencadeada a
operação. Há evidências de que o procurador-geral dela tinha ciência
desde fevereiro. Reportagem da Folha informou que um advogado do
empresário teve aula de delação com o procurador da República Anselmo
Lopes e com a delegada de Polícia Federal Rúbia Pinheiro. Ora, Anselmo é
dos auxiliares mais próximos do procurador-geral. Parece que temos aí,
ainda que se modo indireto, Janot a auxiliar uma das partes, o que é,
como já vimos, ilegal.
6 – Afirmações vazias: A defesa destaca afirmações de Janot na denúncia contra Temer que não se fazem acompanhar de fatos, a saber:
a: o encontro de Rodrigo Loures com Ricardo Saud, pagador de propinas de
Joesley, era desdobramento de um acerto prévio com Temer;
b: Loures teria deixado claro, em diálogo com Gilvandro Vasconcelos, que falava em nome do presidente;
c: encontro de Loures com representante da JBS teria gerado vantagens para Temer.
Atenção! Com efeito, o procurador-geral não aponta evidências que embasem essas afirmações.
7 – Funções conflitantes:
a petição lembra que Marcelo Miller, indiscutível braço-direito de
Janot, desrespeitou a quarentena de três anos imposta pela Constituição e
deixou suas funções na Procuradoria-Geral da República e passou a ser,
imediatamente, advogado do grupo J&F no acordo de leniência. Vale
dizer: atuou de um lado e de outro do balcão. Em nota, Janot tentou
descaracterizar a incompatibilidade, negando que Miller tivesse atuado
no acordo de delação. Os fatos o desmentem.
Concluo
A argumentação de Mariz é sólida, incontrastável, verdadeira. A
indisposição do procurador com o presidente é evidente e reiterada. As
heterodoxias na sua atuação chegam a ser uma aberração. A relação de
parceria de membros do Ministério Público com uma das partes — no caso,
Joesley e seus associados — está demonstrada. Resta claro que saem
feridos o Código de Processo Penal e o Código de Processo Civil. Por
tudo isso, Janot deveria, sim, ser declarado suspeito. Mas não creio que
vá acontecer.
“Ao fazer isso, Temer não acaba dando
munição a Janot?” É uma leitura possível. O que se espera, no entanto, é
que, durante os debates no Supremo, os senhores ministros deixem claro o
que é e o que não é aceitável na atuação do Ministério Público Federal e
do Procurador-Geral da República. Acho que pedir a suspeição é um
benefício que Temer presta ao Estado de Direito.
Ainda que os ministros o mantenham à
frente do caso pelo pouco tempo que lhe resta. Pouco tempo, sim,
sabemos: mas lá vêm mais flechas de bambu.
Fonte: Blog do Reinaldo Azevedo