O Estado de S. Paulo
‘Grande problema’ não são atos pró-democracia, mas falta de governo, de estatísticas, de pudor
À
deriva, o governo faz água por todo lado. O presidente Jair Bolsonaro
continua fora de órbita, em outro planeta, Moro caiu, Mandetta foi
demitido, Nelson Teich desistiu, Paulo Guedes sumiu, o Ministério da
Saúde acabou e o da Economia submergiu, enquanto outras pastas pintam e
bordam, sem rumo, sob aplausos do presidente. Ou o rumo é romper com a
China, estorricar a Amazônia, prender ministros do Supremo e
governadores? Uma situação melancólica, ou desesperadora.
Nem a
exposição da reunião de 22 de abril, uma síntese do governo, que gerou
ou alimentou investigações no Supremo, conteve Bolsonaro. Conforme o
Estadão, foi ele quem deu, pessoalmente, a ordem para o Ministério da
Saúde divulgar “menos de mil mortes por dia” e “acabar com matéria do
Jornal Nacional”. [sem alarde, o horário de divulgação poderia ser adiado para 22h - obtendo o tempo necessário para conferir os dados e corrigir eventuais erros.
Agindo dessa forma não haveria espaço para o Poder Judiciário ser provocado por insatisfeitos e intervir em ato do Poder Executivo.
Houve alarde, elevação à condição de motivo principal um mero efeito colateral e com isso motivou mais uma intervenção do Poder Judiciário em um órgão do segundo escalão do Poder Executivo da União.]
Pois entrou plantão extraordinário na novela, o
Congresso está criando uma central própria e Estadão, G1, O Globo, UOL,
Folha e Extra fecharam parceria para prestar as informações que o
governo sonega ou manipula. O dr. Jair, epidemiologista, assumiu
desde o início uma cruzada particular contra o isolamento social adotado
no mundo todo. O dr. Jair, cientista, determinou o uso indiscriminado
da cloroquina sem qualquer aval internacional ou nacional. Agora, o deus
Jair decide quantos são os mortos do coronavírus. Danem-se os fatos e
as mortes. O que importa é a versão do dr. Jair, o Messias Bolsonaro.
É
triste, e preocupante, o desmanche do Ministério da Saúde – um antro de
esquerdistas, segundo Damares. E é igualmente triste, e preocupante,
que generais e coronéis se disponham a assumir o jogo sujo, sem nunca
terem visto uma curva epidemiológica, mas prontos para a “missão”: bater
continência e cumprir as ordens do presidente que nenhum médico decente
cumpriria. “Às favas os escrúpulos de consciência” – e a condenação da
história. Por que a prioridade para a “mudança de metodologia” na
contagem de vítimas a esta altura? A quem enganam? [Qual a importância - para a sociedade e para o combate à pandemia - que a divulgação passasse para as 22h.
Tornou-se regra combater tudo que o Poder Executivo faz. Mas, o pior mesmo, é que o Presidente da República alimenta, municia, seus inimigos.
E não reage, dentro da legalidade, a cada pancada desferida contra o Poder Executivo.
A regra tem que ser simples: recebeu uma liminar contrariando medida de governo - recorre ao Plenário do STF. Vale lembrar que a então presidente do STF, validou uma decisão de um juiz federal do Brejo do Fim do Mundo impedindo o presidente Temer de nomear um ministro - ele recorreu e tempos depois o Plenário do STF decidiu que a ministra estava errada.
Legislativo fez boicotou, retardou, impediu alguma ação do Poder Executivo, recorre ao STF. ]
Com os mortos
passando de 37 mil, as empresas e os empregos derretendo e a previsão de
queda de 8% do PIB, o presidente declara, sem o menor pudor, que “o
grande problema” do momento são as manifestações de domingo
pró-democracia, contra o racismo e o próprio Bolsonaro. “Estão botando
as manguinhas de fora”, acusou. [IMPÕE DESTACAR A VERDADE: o presidente Bolsonaro não pode ser acusado, sequer em pensamento - se o for, será uma acusação injusta, infundada e até criminosa: ELE NÃO É RESPONSÁVEL pelo desemprego nem pela queda do PIB - a responsabilidade está com os governadores e prefeitos, devidamente avalizados pelo STF.]
Definitivamente, o grande
problema do Brasil não são as novas manifestações, é a gritante falta de
governo, que choca o País e o mundo. Como explicar que o presidente
brasileiro não apenas guerreia com a realidade como passa a assassinar
as estatísticas da pandemia? Fraudar ou dourar o número de mortos e
contaminados não é próprio de democracias. Estamos em más
companhias – Venezuela, Coreia do Norte e Arábia Saudita – e até por
isso, apesar das dúvidas e das críticas legítimas que cercam a
realização de manifestações neste momento, a resistência das
instituições, das entidades, da mídia e das ruas vai encorpando e
encorajando as pessoas a gritarem “basta!”.
Quem “botou as
manguinhas de fora” primeiro? Não foram os que foram às ruas só no
último domingo, mas, sim, os bolsonaristas que afrontaram as
recomendações da OMS e de quase todos os países para fazer aglomerações
em atos contrários ao STF e ao Congresso, usando até o QG do Exército
como fundo. E o que dizer dos 30 alucinados que se dizem 300 e se
plantam armados na Praça dos Três Poderes?
Os vários manifestos,
os atos pró-democracia e a união nacional proposta por Fernando
Henrique, Marina Silva e Ciro Gomes não são ataque, são movimentos de
defesa. Exatamente para “cortar as asinhas” do “gabinete do ódio” do
Planalto e dos golpistas estimulados pelo presidente da República e
pelas redes sociais, com o beneplácito das Forças Armadas.
Eliane Cantanhêde - O Estado de S. Paulo